Esta espécie de linha da frente da poesia popular do concelho de Estremoz mostrou ontem à tarde, a todos quantos lá estiveram para os ver e ouvir, com quantos versos se faz uma boa décima. Foi a etapa final de uma maratona de poesia popular que percorreu as freguesias do concelho ao longo do mês de maio.
Estremoz, 12/6/2011 |
Presentes neste friso de poetas estavam, entre outros, o "Ti" Canoa de S. Lourenço, a D. Constantina, ilustre descendente do genial Jaime da "Manta Branca", o Sr. Altino, antigo "contínuo" da escola secundária, e, claro, o Sr. Aurélio Buinho, do Cano. São, na sua maioria, antigos camponeses. Verdadeiros "sem-terra" que, em tempos que já lá vão, mendigavam trabalho nos campos alheios para poderem sobreviver. Têm o rosto e o corpo marcado por toda a espécie de canseiras, dificuldades e privações.
Conheceram como ninguém as agora (quase) inacreditáveis arbitrariedades de que os todo-poderosos senhores da terra alentejana eram capazes. É disto tudo e de muito mais que falam nas redondilhas que escrevem ou memorizam e é quase comovente o entusiasmo com que, ainda hoje, louvam os ideais ingénuos da reforma agrária, nos quais acreditaram de alma e coração, sem hesitar; a tremura na voz embargada pela tristeza com que dizem as dores e perdas que foram sofrendo ao longo dos anos (um filho, a companheira); ou a forma resignada, mas simultaneamente optimista e sábia, como encaram a velhice e o seu cortejo de doenças e debilidades.
Uma das décimas ditas ontem por Aurélio Buinho, antigo pastor que ocupa(va) o tempo a fazer versos encantadores e de uma força extraordinária, os quais guarda(va) na memória por não saber ler nem escrever foi esta, criada em 1980, a partir de um mote de Luís de Camões e que se mantém actual. Nela é o próprio Portugal personificado que se exprime:
Conheceram como ninguém as agora (quase) inacreditáveis arbitrariedades de que os todo-poderosos senhores da terra alentejana eram capazes. É disto tudo e de muito mais que falam nas redondilhas que escrevem ou memorizam e é quase comovente o entusiasmo com que, ainda hoje, louvam os ideais ingénuos da reforma agrária, nos quais acreditaram de alma e coração, sem hesitar; a tremura na voz embargada pela tristeza com que dizem as dores e perdas que foram sofrendo ao longo dos anos (um filho, a companheira); ou a forma resignada, mas simultaneamente optimista e sábia, como encaram a velhice e o seu cortejo de doenças e debilidades.
Uma das décimas ditas ontem por Aurélio Buinho, antigo pastor que ocupa(va) o tempo a fazer versos encantadores e de uma força extraordinária, os quais guarda(va) na memória por não saber ler nem escrever foi esta, criada em 1980, a partir de um mote de Luís de Camões e que se mantém actual. Nela é o próprio Portugal personificado que se exprime:
MOTE
Já não posso ser contente
Tenho a esperança perdida
Ando perdido entre a gente
Nem morro nem tenho vida
(Fala o País)
I
Eu sou um país assim
Tenho traidores e divisionistas
Tenho ladrões e oportunistas
Que se estão valendo de mim
Mas espero ter o fim
Do desrespeito presente
Quero ter continuamente
A democracia de vez
Mas não respeitam as leis
Já não posso ser contente
II
Tenho em mim tanta pobreza
Tenho rosas e tenho espinhos
E tenho tantos pobrezinhos
Que produzem a riqueza
Tenho a alta nobreza
Tenho a classe desfavor'cida
Tenho atentados na lida
De quem produz o pão
Por não ter paz e união
Tenho a esperança perdida
III
Por tudo isto sou culpado
E do meu interesse esquecido
Há tantos anos adormecido
Sem que me tenham acordado
Deixei marcas no passado
Governei inconveniente
Torturei severamente
Da maldade estou cansado
Sou um país desastrado
Ando perdido entre a gente
IV
Tenho um livro complicado
Tenho a lei atraiçoada
Tenho a vitória falhada
Tenho o interesse do estado
Tenho o rico abastadoTenho a miséria escondida
Tenho a verdade desmentida
Tenho o povo descontente
Sou um portugal doente
Não morro nem tenho vida
In, Camões e os Poetas Populares,
ETZ, 1983
Disse de memória outras décimas de que não tenho registo escrito: a das aflições que enfrentou durante uma tempestade de proporções bíblicas, quando tinha perto de mil e quinhentas ovelhas à sua guarda, as quais se recusavam a atravessar as valas alagadas e transformadas em torrentes fortíssimas para proteger os pequenos borregos e que assim forçaram o pastor passar a noite ao relento; ou aquela, para mim a mais impressionante de todas, dedicada à morte e feita quando, um dia, no campo, ouviu o repique dos sinos que anunciavam um funeral na aldeia distante.
Depois das décimas, animados pelo copo de tinto entretanto distribuído pelo “maestro” Hernâni, logo os poetas afinaram a voz e começaram a cantar à desgarrada. O acompanhamento musical esteve a cargo do Sr. Altino e das suas sonoras “trancanholas”, instrumento musical que ele mesmo inventou e construiu, e com o qual anima jogos florais, excursões e convívios que ele aprecia quase tanto como os “passarinhos assados no carvão” com que remata todas as suas décimas. Enfim, um memorável final de tarde (a qualidade do vídeo é que não é assim tão memorável, mas enfim, foi o que se conseguiu arranjar...)
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