Évora: 29/6/2014 |
segunda-feira, 30 de junho de 2014
segunda-feira, 16 de junho de 2014
Metáforas (quase) naturais - XVIII
domingo, 15 de junho de 2014
As mulheres da minha rua: viúvas, solteiras e malcasadas
Évora: junho de 2014 |
Ao primeiro
olhar, a rua estreita e quase sinuosa parece continuar igual ao que sempre foi:
pacata, pitoresca, uma das muitas que constituem o labirinto histórico da
cidade, por onde os visitantes vagueiam olhando para os lados e para cima, a
encher a memória das câmaras digitais de cores, ângulos e imagens. Ou, pelo
menos, é essa a ideia vendida pelos folhetos turísticos que todos eles levam na
mão. Mas eu, que a conheço por dentro quase desde que nasci, nem preciso olhar
uma segunda vez para saber que a velha rua está hoje tão desbotada pela
passagem do tempo como uma daquelas fotografias de infância que guardo no canto
mais sombrio da velha cómoda. As casas, apertadas umas contra as outras, como
que a encolherem-se para caberem no espaço estreito, estão na sua maior parte
vazias, abandonadas à sua sorte. As paredes espessas, de onde o vento e a chuva
desprendem caliça, estão repassadas de humidade e sobre algumas vai alastrando
uma película de caruncho que deixa no ar um leve odor a bafio e a decomposição.
E há sobretudo um grande silêncio que amplifica os sons da cidade, sobretudo os
mais banais, fazendo-os ecoar demasiado estridentes. Do bulício doméstico que
preenchia os dias da gente que aqui fez a sua vida e há muito deixou este plano
da existência já só restam memórias dispersas, alguns nomes e pequenos
fragmentos de estórias nem sequer muito originais.
Lembro-me bem
da dona Alice, viúva desde os quarenta e picos, com uma única filha então já
adulta e com família constituída, que inventou para si própria o título de
“mulher mais asseada da rua” e fez da pública e inequívoca demonstração desse
seu convencimento a grande razão de existir. Durante muitos anos evitou até
usar a canalização da própria casa para os despejos que, certamente, aí
acumulariam uma sujidade difícil de eliminar. Por isso, ao longo do dia,
juntava num balde as águas sujas da casa e, ao início da noite, quando toda a
gente estava recolhida para jantar, ia despejá-lo perto da sarjeta situada a
menos de vinte metros, evitando fazer barulho. Depois voltava quase rente às
paredes e fechava a porta muito devagar para não chamar a atenção dos vizinhos.
Apesar de todos estes cuidados a verdade é que, com o passar dos anos, o peculiar
hábito que ela tanto queria secreto acabou por se tornar conhecido, motivando
de imediato ásperas críticas por parte das vizinhas que, a qualquer hora do
dia, mantinham em surdina frequentes e longas conversas entreportas, e diz
ela que é asseada, faria se não fosse, atirava uma, enquanto a outra logo
acrescentava em voz baixa, depois de olhar de través na direção da janela da
dona Alice não fosse ela aparecer de repente e perceber que era o tema da
conversa, ela nem faz comida para não sujar a cozinha, anda a pão e queijo
dias seguidos para não perder tempo e poder limpar a casa de cima a baixo,
coitada, aquilo é doença com certeza..., cuidado que ela está à porta e
percebe..., bom dia dona Alice, como está hoje a senhora... ah, estava mesmo
agora a comentar com a vizinha Joana que
não há porta tão limpa como a sua aqui nas redondezas, até dá gosto ver...
Claro que as
coisas azedaram no dia em que a dona Alice, certamente para evitar que o
intenso e característico odor de coentros, alho e azeite interferisse com o
perfume de lixívia impregnado nas paredes, resolveu despejar os restos de caldo
de uma açorda junto à porta da vizinha da frente logo depois do almoço, e não
ao serão, junto à sarjeta, como lhe era habitual. Apanhada em flagrante, o
mínimo que se pode dizer é que viu logo ali a sua reputação de fada da vassoura
de piaçaba a andar às arrecuas, enxovalhada que foi pelos impropérios que a
outra não se coibiu de lhe atirar à cara em alto e bom som e os quais ela,
silenciada não pelo peso na consciência, mas pela humilhação de ter sido
descoberta - e logo por aquela pelintra que só lava o degrau da porta de mês
a mês, ou nem isso -, nem tentou refutar, fechando-se de imediato em casa
para não voltar a ser vista durante o resto do dia e evitando vir à rua nos
seguintes não fosse ter algum mau encontro e sujeitar-se a novo vexame.
Contudo, nem esse incidente lhe moderou o ímpeto higiénico e, fizesse sol ou um
frio de rachar, a dona Alice lá continuou a lavar meticulosamente o degrau de
mármore da porta duas vezes por dia numa espécie de ritual que, dependendo do
número de transeuntes e grau de interesse dos mexericos mais recentes, se podia
estender por várias horas ou ocupar mesmo toda uma tarde até quase ao
anoitecer. As próprias pedras da calçada junto ao rés-do-chão onde vivia,
situado quase a meio da rua, no lado dos números ímpares, eram vigorosamente
esfregadas uma a uma com uma vassoura rija, cujo cabo de madeira mandava cortar
de propósito para ter que se dobrar como se andasse na monda. Décadas deste
árduo labor acabaram por lhe curvar as costas a ponto de, por fim, não
conseguir sequer endireitar-se, mas a larga cópia de informações sobre a vida
de todas as almas da vizinhança e arredores que assim conseguiu acumular e
divulgar pareceu sempre compensar-lhe largamente o desaire.
No primeiro
andar da casa da dona Alice vivia a menina Graça, que era também sua senhoria.
À beira já dos quarenta, era a única mulher numa ninhada de sete irmãos e até
então apenas se lhe conhecera uma única paixão na vida: o vizinho solteiro que
vivia com a mãe no extremo da linha de casas, mas no lado dos números pares.
Funcionário de uma companhia de seguros, sempre impecável no seu fato e
gravata, educado e muito discreto, cumpria horários tão regulares que todos na
rua sabiam a que horas a menina Graça interromperia por instantes os seus
muitos afazeres domésticos para se debruçar numa das sacadas e testemunhar a
chegada do cobiçado solteiro para almoçar. Na vizinhança, este interesse era
conhecido e até comentado, mas nunca se chegou a saber se o pretendido também
sabia disso e fazia questão de ignorar a quase ostensiva presença feminina que
assim o espiava às claras, ou se ele nunca sequer reparou ou se interrogou
sobre o motivo por que ela estava ali, sempre omnipresente na hora exacta em
que ele regressava a casa. Embora a menina Graça até fosse aquilo a que então
se chamava um bom partido, pois era herdeira de uma família abastada, certo é
que nunca o pretendido mostrou qualquer sinal de reconhecimento, menos ainda de
interesse por ela. Mas nem por isso o impulso amoroso da menina Graça
esmoreceu. Apenas, com o decurso dos anos, se foi tornando uma espécie de
hábito adquirido que ela mantinha de forma instintiva enquanto, ao mesmo tempo,
respondia às interpelações da criada que a ajudava nas tarefas domésticas,
virando apenas ligeiramente o rosto para dizer vou já, vou já, sem nunca
desviar o olhar vigilante do fundo da rua.
Na rua morava
também a dona Rosa, que andava já na casa dos cinquenta anos, mas cujo rosto revelava
ainda traços evidentes de uma beleza que, em seu tempo, devia ter dado a volta
à cabeça de muito rapaz. Sempre com o cabelo pintado e muito bem arranjado, de
saia travada pelo joelho, morava sozinha numa espécie de parcela de casa,
constituída apenas por uma estreita divisão em cada um dos dois pisos, contígua
às casas da dona Alice e da menina Graça, de quem, aliás, também era inquilina.
Situada mesmo a meio da rua, tinha ainda a particularidade de possuir um poial
de granito com pelo menos meio metro de altura a que era literalmente
necessário trepar para poder alcançar o puxador de uma dupla meia porta, única
forma de conseguir arejar o acanhado interior, permitindo ao mesmo tempo a
entrada de luz. Ninguém lhe conhecia profissão e o seu estado civil era obscuro
mas, na rua, constava que estava separada do marido há muitos anos. Certo é
que, numa época em que todas as vizinhas ainda davam uso à roupa branca dos
enxovais pacientemente acumulados na mocidade, com ou sem entremeios de renda e
bordados mais ou menos elaborados, dependendo das possibilidades financeiras e
habilidade de mãos de cada uma para a costura, a exuberante paleta de cores e
padrões dos lençóis de compra que a dona Rosa secava no estendal deixava a
vizinhança em alvoroço, pois era vista como um sinal de descarada modernice e
óbvio desafogo financeiro. Sempre estendidos bem abertos e ao comprido, como se
quisesse que todas as vizinhas os pudessem apreciar e comentar, faziam-me
lembrar coloridos penachos de aves ondulando em ostensiva parada nupcial. Mas
esse esparramar de cores e padrões devia-se às nocturnas e regulares visitas de
certo senhor de meia-idade. Aliás, o número de vezes que o estendal se enchia
de lençóis permitia às vizinhas manter uma contabilidade actualizada dessas visitas
e algumas afirmavam mesmo que todas as semanas ela estreava roupa de cama,
coisa que, à época, raiava o quase-escandaloso. Já do seu visitante nocturno
apenas sabiam que era negociante de gado, casado e pai de filhos, o que fazia
da dona Rosa a sua amante oficial, com casa posta e total dependência da sua
generosidade e disponibilidade financeira. Uns anos mais tarde, com a morte
abrupta do amante, o estendal da dona Rosa perdeu muita da sua exuberância, da
mesma forma que ela perdeu o desafogo financeiro. O que lhe vale é
ter sabido aproveitar o bom tempo, dizia-se na rua à boca pequena e foi
certamente esse pé-de-meia que lhe permitiu subsistir com um mínimo de
dignidade ainda durante algum tempo até ser forçada a mudar-se de vez para casa
de uma irmã.
Destas três mulheres, já só uma está viva, a dona Alice, internada num
lar há vários anos. Nunca mais voltou à casa que lavou e limpou obsessivamente
durante décadas. E, a julgar pela sujidade acumulada nos cantos do degrau da
porta, é melhor assim. Novos inquilinos e proprietários tomaram conta das casas
onde estas três mulheres viveram, mas o certo é que a rua me parece mais vazia
a cada ano que passa. E, se há trinta anos atrás todas elas me irritavam
profundamente por não conseguir entrar ou sair de casa, a qualquer hora do dia
ou da noite, sem que pelo menos uma delas desse conta e viesse logo à janela ou
à porta passar-me uma minuciosa revista ocular que me deixava sempre a
desconfortável sensação de ter sido apanhada em flagrante sem ter feito nada de
errado, hoje, entendo-as melhor e olho para as suas vidas de outra forma,
talvez até com uma certa nostalgia, de tal forma que, quando às vezes subo a
rua e já ninguém aparece a espreitar-me como antes, sinto até a sua falta. Pior
que isso, com o desaparecimento destas personagens e das suas idiossincrasias,
a verdade é que a rua perdeu a sua verdadeira alma e tornou-se igual a
tantas outras da cidade: vazia, decadente, a manter uma pose forçada para os
turistas ocasionais que lhe tiram retratos enquanto fazem dela rota de passagem
para destinos mais apelativos. À espera do fim.
quarta-feira, 11 de junho de 2014
Se não for isto, é algo muito parecido - 82
Évora: junho 2014 |
Está aí a vaga das hortas urbanas: no quintal - próprio ou do vizinho -, em loteamentos municipais, na varanda... um pouco por toda a parte e com grande sucesso. Há até as chamadas hortas verticais que trepam pelas paredes das casas, justamente para poupar espaço ou para quando ele está a menos. Encontrei este belíssimo exemplo numa rua do centro histórico de Évora. E bem prático por sinal: apetece um figo para a sopa de tomate do almoço? é só chegar à janela, estender o braço e colher... Isto é que é qualidade de vida!
segunda-feira, 9 de junho de 2014
Os ratos são sempre os primeiros a abandonar o porta-aviões: provérbio ilustrado
Mais uma vez fica demonstrado que os ratos são sempre os primeiros a abandonar o porta-aviões (ler aqui), sobretudo quando lhes chega às narinas o odor das feromonas do poder, e é vê-los a saltar para ver se ali ao lado o banquete tem mais e melhores migalhas...
terça-feira, 3 de junho de 2014
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Dois novos provérbios portugueses
1. No PS quem festeja vitória, logo passa à estória.
2. Dois galos e um poleiro, algazarra no galinheiro.
Imagem daqui |
domingo, 1 de junho de 2014
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