quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Narrativa das árvores - II


Quando ainda muito jovem, todo cheio de vigor e de força, o pinheiro foi implantado na linha de dunas, mesmo de frente para o atlântico, onde lutou sem descanso, às vezes corpo-a-corpo, contra o vento enfurecido, sem nunca deixar que ele o derrubasse. Mas isso foi há tanto tempo que ele já nem sabe contar.
Passados alguns anos, com o tronco todo marcado por lanhos fundos, vergado devido ao esforço excessivo e continuado, era-lhe cada vez mais difícil enfrentar o rijo vento que, para o irritar ainda mais, insistia em lhe soprar para cima das raízes a areia fina das dunas. Quando isso acontecia, só lhe apetecia gritar até fender a grossa casca ou então fugir dali, mas sabia que as raízes enterradas bem fundo na areia compactada pelo tempo nunca lho permitiriam. Às vezes, sentia-se tão cansado que as forças lhe faltavam ainda que só por breves instantes. E foi justamente numa dessas ocasiões que o vento, sempre impiedoso para com as fraquezas alheias, o derrubou sem aviso. Prostrado, ali ficou impotente a sentir como a areia das dunas se tornava a cada dia mais insinuante e ameaçadora, consciente de que, se não fizesse algo para reverter a melindrosa situação em que se encontrava, tinha os dias contados.
Certo dia, viu aproximar-se um ser diferente de todos os que conhecia e que deslizava ligeiro pela areia quente do início da tarde, deixando atrás de si um rasto ondulante. Era uma jovem serpente que, na sua busca errante por alimento e território para se estabelecer, ali tinha vindo parar por mero acaso mas que, logo percebendo que a vida por aquelas paragens não era fácil, seguiu em frente à procura de lugares mais amenos.
Enquanto o vento lho permitiu, o pinheiro observou com atenção o estranho sulco ondulante que atravessava o dorso das dunas. E muitos dias depois de desaparecido o rasto, a imagem daquele ser estranho a deslizar graciosamente pela areia ainda continuava bem viva na sua memória. Não sabia bem explicar como nem porquê, mas parecia-lhe que aquela visão misteriosa e inusitada não acontecera por acaso, que havia ali um qualquer sinal que precisava entender. Até que, numa certa manhã de ventania, quando mais uma vez perdia o fôlego a tentar inutilmente puxar as raízes, percebeu que a estranha forma de locomoção que observara talvez fosse a resposta que procurava há muito tempo para poder escapar à traiçoeira situação em que se encontrava.
Tomou, nesse mesmo instante e sem qualquer hesitação, a decisão que lhe viria a mudar a vida para sempre. Fez um grande esforço para se alhear de tudo o que o cercava, sobretudo do vento que o vinha provocar a todas as horas do dia ou da noite, e começou a concentrar-se mas, pela rigidez entorpecida do tronco tombado, logo compreendeu que não seria fácil. Por isso, redobrou a sua determinação, feita de teimosia, convicção e vontade de vencer e percebeu que a cada dia que passava conseguia chegar um tudo nada mais longe.
Até que, num luminoso dia de abril, sentiu estalar a casca de uma forma estranha e viu que uma escama larga e arredondada se formava lentamente... Logo se sentiu tomado por uma súbita e intensa alegria que lhe percorreu o cerne e o sacudiu todo até lhe deixar as agulhas a vibrar de excitação. Uma alegria como nunca havia sentido antes! Percebeu, nesse mesmo instante, que um dia conseguiria mesmo libertar-se daquele túmulo onde o vento o estava pouco a pouco a enterrar vivo, que poderia finalmente libertar-se daquela permanente obrigação de estar alerta para poder resistir e ripostar e ir ver um pouco do grande mundo que desconhecia. Ganhou então confiança e forças acrescidas para continuar o lento processo de transformação que iniciara há anos atrás.
Agora, já com o tronco bem mais oblongo e quase todo coberto de grandes escamas simétricas está cada vez mais próximo do seu objetivo único: ser, finalmente, LIVRE. 

 

2 comentários:

platero disse...

texto muito bom

GOSTEI

FM disse...

:)