quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Arte Bruta(lizada)

Era uma vez um homem chamado Henry Joseph Darger, Jr. que vivia num quarto alugado e que ganhava a vida como modesto guarda num hospital de Chicago. Figura reservada, não convivia com ninguém e apenas saía de casa para ir trabalhar ou para ir à missa. Mais do que estranho ou misterioso, era para todos um desconhecido. Até mesmo para o único que o tentou ajudar: Nathan Lerner, o seu senhorio. Durante os mais de trinta anos em que viveu no quarto alugado nunca ninguém o visitou e dele apenas se sabia que apanhava lixo nas ruas e o levava para casa. Só quando, já com mais de oitenta anos, Darger ficou impossibilitado de subir as escadas e se tornou necessário institucionalizá-lo é que se descobriu o espantoso mundo secreto que construira ao longo de décadas. Para além de centenas de aguarelas, desenhos e colagens, para além de pilhas de papéis e de revistas, de móveis a abarrotar de imagens recortadas encontrou-se aquela que é, ainda hoje, a mais longa obra de ficção alguma vez escrita: só um dos livros, intitulado The Story of the Vivian Girls, in What is Known as the Realms of the Unreal, of the Glandeco-Angelinian War Storm Caused by the Child Slave Rebellion, tinha - e tem - 15 145 páginas. É um misto de ficção científica e de romance fantástico cujo enredo decorre num planeta bem maior do que a Terra e do qual ela é apenas uma lua. A guerra que opõe as forças da Abbiennia às da Glandelinia leva ao massacre impiedoso de povos inteiros e condena as crianças à escravidão. As heroínas desta quase interminável história são as sete filhas do imperador da Abbiennia – as sete louras Vivian Girls – que, juntas, enfrentam as forças do Mal num combate sem tréguas.

Entre outros livros, Darger escreveu ainda uma autobiografia exaustiva – The History of My Life – com cerca de 5 mil páginas. Este quarto extraordinário e desconcertante onde viveu e escreveu de forma compulsiva está hoje parcialmente reconstituído e preservado no Center for Intuitive and Outsider Art (Chicago) e as suas obras pictóricas integram as colecções de arte de diversos museus americanos. As imagens de crianças angelicais que recortava dos jornais e publicações, pacientemente recolhidos na rua, eram o ponto de partida de todas elas. Vivia, contudo, obcecado por uma imagem: a fotografia de Elsie Paroubek, uma menina de 5 anos que tinha sido assassinada e cuja fotografia fora publicada nos jornais da época.


Darger não é, contudo, caso único. Existem colecções desta chamada Outsider Art ou Arte Bruta espalhadas por vários museus um pouco por todo o mundo. Provêm, na sua maior parte, do espólio acumulado pelos hospitais psiquiátricos que entretanto foram encerrando portas. São manifestações artísticas nascidas do desespero, da doença, da solidão e da vontade de exprimir aquilo que, de outra forma, nunca teria sido expresso. Mas também do génio. São artistas que não se assumem como tal, que trabalham apenas para si próprios e que fazem até questão de esconder a sua arte dos olhos mais curiosos. São quase sempre descobertos por acaso e sobretudo em contexto hospitalar, quando algum médico mais perspicaz ou atento percebe que tem na sua frente autêntica arte e não apenas expressão ou simples terapia. É o caso dos franceses Laure, Aloïse, Émile Hodinos e Augustin Lesange (este último, mineiro de profissão), todos representados na colecção de Outsider Art do Museu de Lausanne. Mas também do brasileiro Moacir, biografado por Walter Carvalho num interessante documentário:


Em Portugal também há Arte Bruta. São (re)conhecidos os casos de Ângelo Vaz Pinto Azevedo Coutinho de Lima, que viveu largos anos em Rilhafoles, e cuja poesia foi publicada na revista Orpheu, ao lado dos textos de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro ou Almada Negreiros, por exemplo. Sobre esta escrita singular, Fernando Guimarães, que organizou em 1971 a primeira edição da sua obra completa, disse "A poesia de Ângelo de Lima, mesmo quando parece ser presa fácil da doença mental a que o seu autor sucumbiu, põe-nos, afinal, um problema de legibilidade que não é essencialmente diferente do que diz respeito a qualquer texto literário..." (cf. GUIMARÃES, Fernando - introdução a Poesias Completas de Ângelo de Lima, Assírio e Alvim, 1991, p. 15):

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado,
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, e se demora.
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...

Mas há mais, como a obra pictórica de Jaime Fernandes, simples camponês nascido na zona da Covilhã em 1900, e que viveu no Miguel Bombarda durante quase trinta anos por sofrer de esquizofrenia paranóica. Escreveu muita poesia ao longo da vida e só aos 65 anos começou a pintar, primeiro com um simples fósforo embebido em mercúrio-cromo e, depois, com uma vulgar esferográfica. Quatro anos bastaram para fazer uma obra que é hoje reconhecida como genial. Sobre os labirintos deste artista e sobre a sua obra, António Reis realizou até um  documentário intitulado “Jaime”.





A colecção de Arte Bruta que constitui o acervo do Museu de Pintura de Doentes e das Neurociências do Hospital Miguel Bombarda é, a nível internacional, uma das maiores e melhores: 3500 obras, recolhidas desde 1902. Apresenta ainda uma particularidade rara: a antiguidade de muitas das obras que a constituem. O hospital está agora a ser encerrado – os terrenos onde está construído valem ouro e o Estado precisa de fazer dinheiro rapidamente -, mas ainda ninguém decidiu nada sobre o futuro desta colecção magnífica. Foi lançada uma petição pública, assinada já por nomes como o de Paula Rego ou António Damásio, pedindo que ela seja preservada, mas não houve até agora qualquer resposta por parte dos responsáveis. John Maizels, editor da revista Raw Vision, questionado pelo Público sobre este assunto (2/2/2011) declarou recentemente que “É uma colecção com coisas muito antigas, e com grande valor histórico. Se o seu país não estiver interessado em cultura e não a quiser que diga, porque há muita gente no mundo interessada.”

Ninguém sabe ainda o que vai acontecer mas, se em tempo de «vacas gordas» já acontecem neste país coisas estranhas, em tempo de crise a empresa não se afigura nada fácil. Sobretudo quando se trata de uma forma de arte marginal, como a própria designação indica: “outsider art”. Sobretudo porque - sabêmo-lo demasiado bem -, assuntos menos “marginais” como as intrigas diárias na (al)cova do poder ou a velhacaria tornada arte da (des)governação, e outros valores ainda mais altos se alevantam.

1 comentário:

Hernâni Matos disse...

Francica:
Se o poder já vendeu a alma ao Diabo por causa das muitas asneiras que tem feito, corre-se o risco de se perder o rico espólio que refere.
É caso para perguntar se não há ninguém que os interne num hospital psiquiátrico em funcionamento. Cá por mim, com carácter de urgência e isenção total de taxa moderadora. A Bem da Nação, pedem os que cá estão.
Obrigado pelo seu post. Desconhecia completamente o assunto.
Um beijinho.
Hernâni