terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Évora blues


Évora: 8/12/2012

















Esta é a estranha cidade dos vivos onde, desde sempre,
também se enterraram os mortos e se usaram depois os escombros
para reconstruir tudo. Uma e outra vez.
Com o tempo, os túmulos tornaram-se caboucos das casas
(talvez por isso, muitas delas se assemelhem estranhamente
a jazigos onde, um dia, alguém decidiu habitar).
Mas não há notícia de os que assim repousam alguma vez
terem importunado os que aqui moram.
Apenas as formas sombrias que a luz projeta
se movem devagar, ao longo do dia, pela tela clara das paredes,
como se quisessem acompanhar o passo dos que transitam pelas ruas.
E é tudo.

Nas travessas estreitas, saturadas de humidade,
respira-se um ar bolorento.
Os raros transeuntes apressam a marcha como se
adivinhassem a perturbadora proximidade
desta lenta decomposição a acontecer há séculos
e que se insinua agora já pelas paredes, muros e telhados…
Em certas zonas da cidade, as casas
começam mesmo a esboroar-se e a derrocar.
Noutras, formas e cores tornaram-se indistintas
de tão gastas pelo tempo e pelo uso.
E há sobretudo um silêncio espesso que se apodera de tudo,
até dos próprios rostos.

Andam pelas praças vagas figuras esfarrapadas,
de cabelo desalinhado, gesticulando,
num permanente e vivo diálogo com alguém
que insiste em manter-se invisível e em silêncio.
Também neste lugar foi sempre muito ténue
a linha que separa os alienados dos sãos.

E contudo, nas ruas mais sinuosas,
algumas paredes irregulares parecem ainda estremecer
muito ao de leve quando alguém passa,
como se despertassem por instantes do seu torpor.
Por vezes, a luminosa serenidade de certos recantos
conta mesmo que, um dia, talvez quando
sob estes escombros que se amontoam nas ruas
estiverem sepultados todos os que agora vivem
e já novas casas se começarem a erguer,
a luz projecte menos sombras nas paredes,
o ar tenha o aroma resinoso das estevas,
os rostos andem menos circunspectos
e o silêncio esteja repleto de aves.

Talvez então eu possa voltar de alguma forma
a caminhar pelas ruas de Évora.
Talvez então eu aí encontre de novo as duas ou três pessoas
que lamento ter perdido de vista nestas esquinas aguçadas
e descubra até que ponto é possível
reerguer dos escombros os sentimentos
– e as pessoas que eles ligam –,
como se erguem as casas.
Talvez então eu me consiga sentir, finalmente, em casa.
 
Évora: 8/12/2012

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