Évora: 8/12/2012 |
Esta é a estranha cidade dos vivos onde, desde sempre,
também se enterraram os mortos e se usaram depois os escombros
para reconstruir tudo. Uma e outra vez.
Com o tempo, os túmulos tornaram-se caboucos das casas
(talvez por isso, muitas delas se assemelhem estranhamente
a jazigos onde,
um dia, alguém decidiu habitar).
Mas não há notícia de os que assim repousam alguma vez
terem importunado os que aqui moram.
Apenas as formas sombrias que a luz projeta
se movem devagar, ao longo do dia, pela tela clara das paredes,
como se quisessem acompanhar o passo dos que transitam pelas ruas.
E é tudo.
Nas travessas estreitas, saturadas de humidade,
respira-se um ar bolorento.
Os raros transeuntes apressam a marcha como se
adivinhassem a perturbadora proximidade
desta lenta decomposição a acontecer há séculos
e que se insinua agora já pelas paredes, muros e telhados…
Em certas zonas da cidade, as casas
começam mesmo a esboroar-se e a derrocar.
Noutras, formas e cores tornaram-se indistintas
de tão gastas pelo tempo e pelo uso.
E há sobretudo um silêncio espesso que se apodera de tudo,
até dos próprios rostos.
Andam pelas praças vagas figuras esfarrapadas,
Andam pelas praças vagas figuras esfarrapadas,
de cabelo desalinhado, gesticulando,
num permanente e vivo diálogo com alguém
que insiste em manter-se invisível e em silêncio.
Também neste lugar foi sempre muito ténue
a linha que separa os alienados dos sãos.
E contudo, nas ruas mais sinuosas,
Por vezes, a luminosa serenidade de certos recantos
a linha que separa os alienados dos sãos.
E contudo, nas ruas mais sinuosas,
algumas paredes irregulares parecem ainda estremecer
muito ao de leve quando alguém passa,
como se despertassem por instantes do seu torpor.Por vezes, a luminosa serenidade de certos recantos
conta mesmo que, um dia, talvez quando
sob estes escombros que se amontoam nas ruas
estiverem sepultados todos os que agora vivem
e já novas casas se começarem a erguer,
a luz projecte menos sombras nas paredes,
o ar tenha o aroma resinoso das estevas,
os rostos andem menos circunspectos
e o silêncio esteja repleto de aves.
Talvez então eu possa voltar de alguma forma
a caminhar pelas ruas de Évora.
Talvez então eu aí encontre de novo as duas ou três pessoas
que lamento ter perdido de vista nestas esquinas aguçadas
e descubra até que ponto é possível
reerguer dos escombros os sentimentos
reerguer dos escombros os sentimentos
– e as pessoas que eles ligam –,
como se erguem as casas.
Talvez então eu me consiga
sentir, finalmente, em casa.
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