Revelações como as do Wikileaks, ou as diversas e mais ou menos embaraçosas situações pessoais e profissionais em redes sociais como o Facebook ou o Twitter têm questionado os limites da privacidade na voragem informativa em que vivemos. Discute-se aliás a questão como se ela fosse nova, mas o que há aqui de novo não é a situação em si e sim algumas das suas consequências e implicações: a informação em suporte de papel que antes ficava limitada a um grupo restrito de pessoas tornou-se agora virtual, sendo amplificada pela rede, em certos casos até ao limite do mundo global (veja-se o fenómeno wikileaks); e, porque essa mesma rede guarda toda a informação há sempre a possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, nos virmos a confrontar de novo com ela (veja-se o caso de certos mails que já todos recebemos uma meia dúzia de vezes), assim numa espécie de revisitação ciclíca.
Vem isto a propósito da doação (assinada hoje mesmo) do espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen à Biblioteca Nacional. Após a morte da poetisa ficaram muitas caixas cheias de papéis a que era preciso dar um destino. Se fosse uma anónima pessoa, não há dúvida de que o ecoponto resolveria a situação. Porém, tratando-se de Sophia, o caso era bem distinto. Impunha-se guardar os papéis soltos, cadernos, manuscritos, fotografias e cartas que pudessem, de alguma forma, ajudar quem pretende fazer investigação sobre a sua obra e preservar também o seu trabalho inédito.
Foi à filha, Maria Andresen, que coube esta complexa tarefa de (re)descobrir a mãe e a poeta nos papéis que ficaram: a vida e a obra de Sophia desde os cadernos com os primeiros poemas, escondidos - ou (pre)reservados? – no fundo de uma arca, até aos poemas finais, de letra tremida, tão intensos e íntimos que ainda não têm destino definido. É também ela quem decidirá o que fica desde já disponível para consulta pública e o que só ficará acessível daqui a 20 ou 30 anos. Fala-se mesmo na futura publicação dos muitos inéditos que ficaram.
Tudo isto me levanta sempre as mesmas dúvidas: será que Sophia - ou qualquer outro autor em idênticas circunstâncias – quereria partilhar esta “eternidade” com o público? Preferiria ela ficar só pelo que publicou em vida? Teria ela, ainda em vida, dado algumas indicações ou manifestado algumas intenções sobre este assunto? Se pudesse ainda escolher ou decidir, teria feito assim? Até que ponto não estamos a entrar em domínio privado, pessoal e, por isso, reservado? Lembro-me sempre de ter lido, há já muitos anos, a correspondência amorosa entre Fernando Pessoa e Ofélia Queirós num misto de curiosidade e de embaraço por sentir que estava a ler algo que, pela sua natureza, só deveria ser tornado público por decisão dos próprios. Apesar das justificações de peso, tudo isto me deixa sempre muitas dúvidas. Se calhar há registos escritos que todos preferiríamos ver desaparecer connosco, e só não os fazemos desaparecer enquanto ainda estamos na posse de todas as nossas faculdades mentais porque há ligações afectivas muito fortes que nos impedem disso. Rasgar papéis é um acto simbólico, que também pode ser bastante doloroso.
Só que, agora, já nem é preciso ser-se Sophia ou Saramago para nos vermos, também nós, confrontados com uma situação idêntica: na sociedade da informação – mesmo os mais anónimos e anódinos de nós - temos um rasto existencial não de papéis, mas sobretudo de palavras, de informações, de opiniões e de imagens na rede. E somos nós próprios que o vamos criando através das postagens e comentários em blogues pessoais ou alheios, das contas que criamos nas redes sociais, das informações pessoais que registamos nos sítios online das mais diversas empresas, companhias e serviços online. O Google e as próprias redes sociais, no fundo, não são mais do que gigantescos e assustadores armazéns de informação. É como uma espécie de festim à espera dos comensais certos (hackers). Podemos sempre alimentar a ilusão de que, um dia, apagaremos tudo, mas não é assim tão fácil, nem tão óbvio. Até porque a “rede” faz aqui toda a diferença: apaga-se num sítio, mas há sempre qualquer coisa que fica noutro sítio qualquer e, para alguém vontade de ligar as pontas soltas, haverá sempre forma de reconstituir a informação original.
Só que, agora, já nem é preciso ser-se Sophia ou Saramago para nos vermos, também nós, confrontados com uma situação idêntica: na sociedade da informação – mesmo os mais anónimos e anódinos de nós - temos um rasto existencial não de papéis, mas sobretudo de palavras, de informações, de opiniões e de imagens na rede. E somos nós próprios que o vamos criando através das postagens e comentários em blogues pessoais ou alheios, das contas que criamos nas redes sociais, das informações pessoais que registamos nos sítios online das mais diversas empresas, companhias e serviços online. O Google e as próprias redes sociais, no fundo, não são mais do que gigantescos e assustadores armazéns de informação. É como uma espécie de festim à espera dos comensais certos (hackers). Podemos sempre alimentar a ilusão de que, um dia, apagaremos tudo, mas não é assim tão fácil, nem tão óbvio. Até porque a “rede” faz aqui toda a diferença: apaga-se num sítio, mas há sempre qualquer coisa que fica noutro sítio qualquer e, para alguém vontade de ligar as pontas soltas, haverá sempre forma de reconstituir a informação original.
Não tenho dúvidas de que um dia, alguém há-de decidir por nós o que fazer com toda esta informação acumulada. E, no meu caso particular, o mais provável é não vir a gostar nada de me (re)descobrir nesta “leitura” alheia. Ou, como escrevia Sophia de uma forma quase premonitória: na rede, "Um dia, mortos, gastos, voltaremos" (em caderno com textos datados entre 1933 e 1935. Publicado em "Dia do Mar").
Imagem do sítio http://www.bnportugal.pt/ |
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