Ainda o tchim-tchim das flûtes de espumante nos ecoa nos ouvidos à mistura com os votos e brindes de “bom ano novo” e já os noticiários nos bombardeiam o espírito com as palavras “crise” e “austeridade”, acompanhadas pela interminável, detalhada e generalizada lista de aumentos de preços que vamos ter que suportar a partir de janeiro.
Apesar desta chicotada financeira e das garantias do ministro das Finanças de que ela é, não apenas necessária mas também suficiente, para fazer descer o défice do estado para uns decentes 4,6 %, a verdade é que a notação atribuída pelas agências de rating à dívida portuguesa não pára de descer, como se viu há poucos dias com a Fitch. Este corte no “rating” da dívida externa acompanha não apenas a crescente dificuldade do estado em endividar-se no estrangeiro, mas também já a dos próprios bancos nacionais. Tudo parece assim indicar que as ditas agências de notação financeira olham para a flûte de espumante nacional e a vêem mas é cada vez mais vazia.
Claro que o senhor ministro das Finanças veio de imediato lamentar-se por mais esta agora incompreensível injustiça, salientando que há um orçamento de estado já aprovado para o próximo ano, contendo medidas reforçadas de consolidação e controlo orçamental e que, na sua douta opinião, tudo vai resolver. Ao ouvir tamanho optimismo e convicção seríamos tentados a dizer que a flûte, afinal, está meio cheia, ao contrário do que pensam e dizem todos esses especialistas e analistas financeiros. E a prová-lo deve estar o facto de o Estado se continuar a endividar alegremente lá fora como quem, em noite de réveillon, esvazia flûtes de espumante para esquecer o amanhã.
Ora até eu sei que sem dinheiro isto não funciona, de facto. Mas também sei, e as associações de defesa do consumidor alertam todos os dias para isso, que quando alguém começa a contrair novos empréstimos para pagar os anteriores e respectivos juros, a coisa se começa a tornar realmente grave. E sei ainda que o mais certo e comum nestas circunstâncias é alguma entidade exterior ao problema ter que intervir para negociar uma solução com os bancos e encontrar formas de evitar o descalabro financeiro da pessoa endividada e a perda total dos seus bens (casa, carro, bens diversos), comprados com a ajuda desses mesmos bancos e instituições de crédito. Todos os anos centenas de famílias recorrem aos serviços jurídicos da Deco, por exemplo, para renegociar as dívidas à banca e estabelecer verdadeiros planos de sobrevivência financeira, que possam efectivamente suportar.
Ora nós temos vindo a assistir passivamente às notícias que dão conta de que o nosso estimável primeiro-ministro anda aí pelo mundo, qual caixeiro viajante, a tentar vender a toda a gente títulos da nossa dívida: aos chineses, aos brasileiros, aos angolanos e até, pasme-se, aos timorenses. Até agora só tem havido lindas promessas de ajuda, claro. Se houvesse por cá petróleo e afins haveria certamente interessados, mas assim é mais difícil e as contrapartidas exigidas ao governo para que o façam devem ser da ordem do «é melhor nem sabermos», pelo menos para já. Na verdade, até agora, só o Banco Central Europeu tem estado realmente a comprar títulos da dívida, do nosso e de outros países europeus em dificuldade, para nos facilitar a continuação do endividamento, isto é, para que nos continuem a emprestar dinheiro a taxas de juro que, embora sempre a subir, se mantenham em níveis não demasiado escandalosos. Ora parece-me que vai sendo tempo de criar uma espécie de Deco mas para os países, assim uma entidade que o senhor ministro das Finanças pudesse consultar para ver como é que vai conseguir fazer a proeza de pagar todas as dívidas que tem andado a contrair em nosso nome – e que vão continuar a crescer este ano -, sem paralisar de vez um país que já está com dificuldade em respirar devido à frágil situação económica (acentuado decréscimo da produção de riqueza e do investimento económico) e ao sério agravamento das dificuldades e problemas sociais que daí derivam. Por outro lado, era bom que alguém explicasse ao senhor ministro das Finanças que contrair dívidas para pagar empréstimos já vencidos, a taxas de juro cada vez mais altas, é capaz de não ser uma ideia muito inteligente também para os países, sobretudo numa conjuntura internacional tão desfavorável. Ou talvez essa entidade até já exista e se chame FMI. Os nossos governantes têm-se mostrado desagradados com esta possibilidade, argumentando que os cortes seriam então a direito e que as medidas de austeridade seriam bem mais profundas. (Dizem também que conseguem sozinhos dar conta do recado, mas acho que, sobre isso, até eles próprios têm sérias dúvidas.) Só que, tendo em conta o total dos cortes que vão ser feitos este ano nos salários e nos diversos apoios do Estado, concatenados com os aumentos de preços e de impostos, eu diria que muito pior não deve poder ser. Experimentem perguntar aos que perderam o emprego, alguns até já o próprio subsídio de desemprego, aos que estão sem qualquer expectativa de novo emprego e que têm vindo a perder tudo, até a própria dignidade, se acham que é possível vir alguém e cortar ainda mais a direito que isto? E se vier uma entidade que corte realmente a direito em tudo, até na corrupção e no favorecimento mais desavergonhado, haverá alguém, de entre os que já estão a pagar as chorudas facturas de todos estes desv(ar)ios, que se oponha à sua presença por cá?
É claro que o senhor ministro das Finanças goza da reputação de ter “competência técnica” e por isso, só espero que consiga aguentar o malabarismo circense a que se propõe: manter todas estas peças em equilíbrio instável sobre o fio da navalha, assim tipo número de circo chinês de natal. Certo é que, por agora, a única flûte que está a ficar cada vez mais cheia – e de champanhe genuíno – é, sem dúvida, a dos nossos credores. E algum tilintar mais cristalino que se ouviu pelos céus aí na noite de passagem de ano foi certamente dos brindes que tais personagens fizeram ao sucesso dos seus negócios e aos bons auspícios para 2011. É que, já na próxima semana, o Estado português vai novamente a leilão internacional para contrair um novo empréstimo, com taxas de juro muito próximas dos 7%. E nós bem podemos começar desde já a poupar para pagarmos mais este e os que se lhe irão seguir ao longo do ano. Brindemos, pois, ao recém iniciado Ano Novo antes que se acabe até o dinheiro para o espumante: tchim-tchim.
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