Évora; Julho 2011 |
"O 25 de Abril abriu um processo complexo de luta intensa contra a não-inscrição, pelo menos num plano restrito, com os governos provisórios a tomarem medidas «definitivas», a criarem «factos (leis, instituições) irreversíveis» antes de caírem, na ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, com a qual contribuiriam para a construção da nova sociedade. Simplesmente, o substrato da não-inscrição continuava vivo, e toda essa actividade frenética e delirante para inscrever a Revolução - escrevendo a História - não fazia mais do que eliminar a impossibilidade de inscrever, essa sim, inscrita no mais profundo (ou à superfície inteira) dos inconscientes dos portugueses.
Foi assim que o discursos político se tornou dominante na vida portuguesa. Num certo momento ele transvasou para a sociedade civil, identificando todo o poder com o poder político. As únicas oportunidades para inscrever o que quer que fosse da existência individual ou colectiva deviam necessariamente passar pelo poder político.
Foi assim também que a vida social portuguesa, agora pacificada, normalizada, viu a não-inscrição reassumir os seus privilégios em todo o seu esplendor. Tal ministro que se aproveita ilegalmente de uma lei para escapar ao fisco demite-se para voltar à tona incólume, meses ou anos depois; o escândalo que mancha a acção de um governante, longe de o afastar definitivamente da política, pode ser mesmo a ocasião para começar uma carreira com um futuro ainda mais brilhante (um posto mais bem remunerado ou com prestígio internacional, etc.). Nada tem realmente importância, nada é irremediável, nada se inscreve.
E se tudo se desenrola sem que os conflitos rebentem, sem que as consciências gritem, é porque tudo entre na impunidade do tempo - como se o tempo trouxesse, imediatamente, no presente, o esquecimento do que está à vista, presente.
Como é isto possível? É possível porque as consciências vivem no nevoeiro."
José Gil, in Portugal, Hoje: O Medo de Existir. Lx: Relógio d'Água, 2005, 4ª Ed., pp.17-18.
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