segunda-feira, 14 de março de 2011

A crise, a geração "à rasca" e a força da música

É curioso verificar como, para quase tudo, somos periféricos (o que é sempre uma boa desculpa para... quase tudo, desde ver passar os navios a ver passar a caravana e já nem sequer ladrar...). Por vezes, ouvindo os discursos e declarações dos donos da Europa - e do próprio país - , parece até que é uma espécie de fatalidade contra a qual nem vale a pena pensar em lutar e por apenas nos limitamos a esperar que os outros não nos declarem insolventes. E no entanto, há coisas em que, paradoxalmente, até estamos bem no centro dos acontecimentos. A começar pela "crise": tão periféricos, tão à margem de tudo, com uma economia tão ligeira que nem sombra faz, quanto mais concorrência, mas logo aqui, vá-se lá perceber isto, estamos bem no centro, se não mesmo na vanguarda. 

E os protestos das "vítimas" da crise têm-se feito ouvir por toda a Europa, mesmo nos países que actuam como donos do velho continente. Por cá, a coisa tem demorado a arrancar mas, a julgar pelo que vi e ouvi no passado sábado, parece-me que começámos a recuperar o tempo perdido e a ganhar terreno. Tudo isto graças ao despertar do dragão adormecido, essa tal geração "à rasca" que é afinal a mais qualificada de sempre num país que mantém elevadas taxas de analfabetismo,  a mais urbana também, graças à desertificação galopante do interior do país e, sem dúvida, a mais tecnológica. Tudo na vida destes jovens passa pela internet, sobretudo pelas redes sociais. E nestas, tudo se baseia na partilha: as imagens que documentam o quotidiano, os vídeos, as músicas, os textos que vão das anedotas às crónicas e artigos de opinião e que, num único clique, de forma quase imediata e viral, chegam a todos os utilizadores da rede. A teoria de que o "mundo é pequeno" é, afinal, o grande lema das redes sociais. Por isso é cada vez mais provável que tudo o que acontece, aconteça antes no facebook. E foi exactamente isso que se verificou com as grandes manifestações do fim-de-semana. Foi dado um passo decisivo. Havia muita prudência na verbalização de expectativas por parte dos organizadores porque, como é óbvio e dadas as características apartidárias do movimento, não havia a priori quaisquer garantias. Mas o número de manifestantes superou até mesmo as previsões mais optimistas, e isso só pode funcionar como um reforço positivo que vai incentivar novas iniciativas em que fique bem clara a "força" desta tal geração à rasca. E não demorarão muito a fazer-se ouvir novamente na rua já que, para eles, tudo tem que acontecer muito depressa. Esta é afinal a geração que não consegue esperar mais do que os breves segundos que demora a fazer o download da nova música do momento.

E de certa forma, é ela - a música - a força mobilizadora destes jovens. Basta ver a forma como acorrem em massa aos grandes concertos e festivais de música no país. Estes jovens pertencem a uma geração em que a música se tornou a mediadora da sua relação com o mundo e com os outros, uma vez que dispõem da tecnologia - mp3/4, ipod's e afins - que lhes permite levá-la para todo o lado, e partilhá-la também.

A omnipresença e a omnipotência da música na cabeça dos jovens desta geração (Deolinda, Homens da Luta, GNR, etc.) não é um fenómeno exclusivamente nosso, bem pelo contrário. O aparecimento de determinadas músicas que se assumem como de protesto tem antecedido ou acompanhado os protestos dos jovens noutros países europeus, e não só. É o caso, por exemplo, dos ingleses "The Agitator" que têm como vocalista um verdadeiro incendiário e activista da palavra: Derek Meins.


Ou ainda de "Les Enfoirés" em França:


Mas voltando a "The Agitator": na canção "Get Ready", editada em Maio último, pode ler-se que "We can't afford to hesitate / Now's the time to agitate". E, numa entrevista recente, Meins declara que faz "Música como expressão artística e inspiração para uma mudança social." Acrescenta ainda que "As pessoas estão hoje conscientes que a ideologia de fazer o máximo de dinheiro possível, a toda a hora, no período de tempo mais curto, não funcionou, não é a melhor forma de organizar o mundo. As pessoas genuinamente zangadas, furiosas por verem a injustiça como padrão numa sociedade que assegura pelo voto quem toma as decisões no topo." (Ípsilon, 31/12/2010)

Se calhar, é mesmo por aqui que as coisas podem começar a acontecer. É que, nesta tal geração "à rasca", mais do que a sintonia entre a música e a rua existe a "música na rua" que é algo de verdadeiramente novo nos movimentos de protesto:


E o tipo de força interior, ou de vontade obstinada, que leva esta geração para a rua é muito semelhante à que os leva a esperar vários dias ao relento para garantir lugar na primeira fila do concerto e cantar a plenos pulmões com as bandas. Foi por isso também que quase todos desfilavam pela avenida com os fones e a ouvir as 'suas' músicas. Há, sem qualquer dúvida, uma banda sonora pessoal nestas manifestações, a qual toca, se calhar bem mais do que as palavras de ordem e os discursos inflamados, no ouvido e no espírito destes jovens. Quem quiser começar a perceber melhor aquilo que pode vir a acontecer a seguir o melhor que tem a fazer é começar a ouvir estas músicas (e outras). Ou, como diria The Agitator, "Get Ready":


Neste campo, e ao contrário do que é habitual, não somos periféricos. Bem pelo contrário. Estamos a acompanhar de bem perto o que se está a fazer também lá por fora. Utopicamente falando, quem sabe se não vem aí a "revolução musical"?...

PS: Mas, a julgar pelo que aconteceu com a dos "cravos", o mais provável é que tudo se acabe em "vira o disco e toca o mesmo".

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