domingo, 2 de setembro de 2012

dois poemas de António Gancho

(um poeta muito, demasiado, esquecido pela sua (e minha) cidade. Tão injustamente esquecido.)





 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Itálica,
Burgos e todas as catedrais espanholas
há uma cidade cheia de Sol a compor a direcção
Se o mar fica no fim
Lisboa fica ao pé de Lisboa fica súbito
como se o Tejo fosse um braço decepado
e um cacilheiro total o pano de uma bandeira
Pensa-se no rumor tribal que inunda todas as ruas
faz-se um boulevard duma avenida nossa
põe-se Lautéamont a inventar um prédio.
Há a loucura a inundar a parede
o relógio que
Faço um poema e nasce uma cidade
invento o conteúdo geográfico das coisas.
Escrevo um nome e nasce Dublin
porque Dublin escrevi.
Se onde ponho um traço nasce uma via de ferro
então é um comboio em direcção a Roma.
Faço uma cidade e vejo-me um neón
ponho um anúncio e nasce uma cigaretta.
O italiano compõe o soar da palavra
eu dou uma entoação ao segredo do fim
Se há um horizonte para divulgar o Sol
há uma expectação para divulgar o coração
Se há um moinho para os lados de Perpignan
há Daudet a repousar o Sol numa cadeira
Se há Avignon, uma festa, a França, a Península

se primeiro bateu na cabeça de Poe
bate depois no sangue feito do conto
divulgado no livro
Lê-se o fígado do poeta no álcool derramado
sobre o desmaio de Ligeia
se esta tem as mãos ebúrneas nasce âmbar
nas mãos brancas duma conceição tripartida.
Ah, se onde ponho a imaginação nasce um lírio
derramem-me a história duma amante sobre a cabeça
pois sou o amante duma perversão absoluta.
Não rasgues o sentido do ombro aí onde tens o tatu do destino
e aí onde só a virgindade do teu androceu malino
pode faltar a dimensão do totem a inundar de carácter
todo o céu africano.
Ah, nasça-me um árabe de luz com seu corpo moreno
contradizendo a logica
nasça-lhe uma idade de rosto sua idade gidiana
para compor a tenda com precaução indefinida.
Reveja-se o jeep inglês de Lawrence
que inundava o deserto duma celtidade absoluta,
o zénite solar sobre o bico da tenda.
Só a imagem dum rio pode dar ao poema
toda esta noção geográfica que o poema não tem.
Bramaputtra
se nasceres no papel vou dizer à ondina do gnomo
que a floresta não constrói.
Ponho uma fonte a cantar na cabeça do gnomo
e o gnomo surge e nasce
como o ícone divulgado.
É rica a mitologia germana
para dar um sentido ao godo que de chifres na cabeça
usa um segredo quotidiano pendular
que é o pulso esquerdo da fêmea.
Põe-se-lhe a data
e o poema nasce
rubicundo
como a ponta de um lápis
que escrevesse no registo
o nome macho dum bebé.
I achieve
I finalize
eu acabo
eu finalizo.
É o poema terminado.

António Gancho, In O ar da manhã;
Lx: Assírio e Alvim, 1995
 

Pátria

 
Pátria lusa difusa
arguta, e escuta a hipotenusa
das raças. Asas, face, rosto e nação
a pátria é a nação quando há pão.
Pátria nacional, pátria do nosso pai,
Portugal, com força de aço
serás arguta, lusa pátria,
pátria lusa só nossa
e até onde se possa
abrangerás.
À saciedade a paz do espírito,
a paz e só a paz
a paz das almas também
que já morreram
que Deus tem
a paz entre as oliveiras
a dignidade das maneiras
a paz dos dias das horas entre as horas
os dias pelas noites fora
demora atenta e que é em seu tempo achada
a paz, país, Portugal,
pátria endeusada que é nossa, nacional,
a paz pode-se dar
é entre as oliveiras
num homem ao desmaiar até
de múltiplas maneiras
na sede que há no mar
na fé em ti depois por secular que és
nós juntos a teus pés
diremos
pátria país meu pai meu Portugal
diz que diz que é bem não fazer o mal
país meu e de meu pai
seu primeiro pedestal
por Portugal depois
por pátria primeiro pois
assim e assim e sempre assim
por fim são dois
país e Portugal, pátria
sois propriamente o sal.

 

António Gancho, In O ar da manhã;
Lx: Assírio e  Alvim, 1995




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