O Novo Acordo Ortográfico (AO) em vigor promove o retorno a uma escrita mais fonética, cuja face mais visível é a supressão das consoantes mudas.
Esta tentativa de fazer prevalecer a fonética sobre a etimologia, além de polémica, não acontece sem criar um anedotário próprio.
Desenvolvi hoje na Biblioteca da escola uma atividade de leitura de textos narrativos curtos Numa mesa onde estavam colocadas várias dezenas de títulos muito variados os alunos podiam escolher livremente o que lhes "apetecesse". No final, apenas tinham que preencher um papel indicando o título do livro e dar a sua opinião sobre o livro/atividade.
Alguns resistiram e refilaram o tempo todo: "ó professora, detesto ler"; "professora, não posso antes ir fazer isto ou aquilo". Dois ou três fazem mesmo questão de afirmar que nunca leram um livro nas suas ainda curtas vidas. É obra! Só depois de muita argumentação lá se foram então conformando e começaram a escolher um livro para ler.
A avaliação solicitada era um tanto ou quanto a preto e branco, para além de anónima, mas permitiu obter informação preciosa.
Alguns, certamente aqueles para quem a simples ideia de ler um livro é sinónimo de horror e tortura, não pouparam nas palavras. Eis apenas alguns exemplos das razões apresentadas pelos que, decididamente, não gostaram desta atividade:
Contos Policiais - "não porque tem muitas paginas"
A salvação de Wang Fô e outros contos orientais - não "porque o velho é parvo"
Contos de África e da Europa - não "porque isto não presta pra nada"
O Fantasma dos Canterville - não "porque é muito grande e não tem imagens"
Contos Tradicionais Portugueses- não "porque a Biblioteca serve só para jogar computador, não é cá para ler um monte de palavras inúteis que não servem para nada!"
Quanto aos que declararam ter gostado da atividade destaca-se a palavra "interessante", presente em muitas locuções como estas: "achei interessante"; " foi interessante", etc. as quais, justamente, por pouco terem de interessante não contam para esta estória.
Bem mais "interessante" foi ir verificando a criatividade ortográfica de um número significativo de alunos. Eis alguns exemplos:
Boca do Inferno - "é interçante"
A salvação de Wang Fô e outros contos orientais" - "pelo que li pareceu-me intersante"
Contos da Montanha - "porque é interesante"
Antologia do Conto Português - "achei intresante esta iniciativa"
Novas Crónicas da Boca do Inferno - "foi bastante interassante e divertido"
Contos de África e da Europa - "é um livro interresante sobre África e da europa é engraçado"
Lá pelo meio encontrei verdadeiros "bombons com recheio", como estes:
Lá pelo meio encontrei verdadeiros "bombons com recheio", como estes:
Um deles não escreve (esquecimento ou preguiça?) o título do livro, mas diz: "Eu achei o livro imucionante".
Um outro escreve assim o título do livro que folheou, mais do que leu: "O testamento do Sr. Natamoceno" (naturalmente, refere-se a "O testamento do senhor Napumoceno da Silva Araújo" de Germano Almeida").
Este panorama da ortografia é o resultado de um conjunto de situações sobre as quais nem vou sequer discorrer muito (até porque é exercício inútil): falta, ou mesmo ausência de hábitos de leitura; simplificação dos currículos; massificação do ensino; pouca exigência e excessivo facilitismo do processo de avaliação, especialmente na escolaridade obrigatória, em prol de estatísticas nacionais mais favoráveis, etc. Esta é a realidade do nosso sistema educativo há já demasiado tempo. Agora, por todas as razões e mais a crise económica (redução brutal do investimento público no ensino), vai ser muito difícil mudar este estado de coisas.
Tenho pois boas e más notícias para os que continuam a lutar contra o novo AO. Boa notícia é que os alunos se têm adaptado muito bem à nova realidade, apesar da exuberância de algumas das reações iniciais (tipo, "eu cá não vou escrever assim") ter feito prever bem pior. Agora preparem-se, que isto da ortografia fonética é como um rio cujo caudal está a ganhar força e, não tarda, será muito difícil, talvez mesmo impossível, controlá-lo. E esta é, sem dúvida, a pior notícia para aqueles que ainda acham que a ortografia devia continuar a refletir (ou reflectir, cá está) a etimologia das palavras portuguesas.
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