À hora em que as estevas acordam para o sol da manhã, regresso ao
caminho de terra batida que serpenteia pelos campos empapados de água, onde os
pés se afundam na lama verde da vegetação despontada, para contemplar a grande
pedra como se ela estivesse ali à minha espera. Volto a sentir no ar que aqui se
respira uma vibração própria, um murmúrio ininteligível que só acrescenta fascínio à beleza deste lugar. E a toda a volta um silêncio feito da ausência dos
pássaros que ainda não chegaram trazendo a inflorescência primaveril nas asas.
Altar sacrificial por onde
o sangue inocente corria, dizem, para aplacar os caprichos dos deuses - ou
talvez apenas as faltas humanas -, coberta de cicatrizes antigas por onde escorre
agora um musgo viscoso como sangue espesso. Ou talvez apenas um
grande cálice quase natural, para recolha da chuva purificadora que abençoa os campos e a vida dos
homens que neles labutam.
Ao certo, só sei que esta pedra velha como o mundo, parada à beira do caminho, não é igual a
nenhuma outra e isso basta-me. Trepo pelas saliências do seu dorso arredondado e,
devagar, toco com a mão no rebordo da gamela maior como se ali pudesse
depositar o desconcerto desta dor de andar perdida em corpo alheio e em tempos sempre irremediavelmente desencontrados. Não ficaria
para ver, mas sei que gotejaria devagar pelo torso granítico até se misturar com a terra e ficar só uma pequena cicatriz quase
invisível no fundo irregular da concavidade.
Desço e volto a olhar a grande pedra, quase reconhecida pela sua
generosidade ancestral de aceitar o que os homens já não querem ou não suportam
mais. Regresso então a casa, e a mim, trazendo só na memória o cheiro resinoso das
estevas que rebentam de verde. E quase ágil de tão mais leve.
Santana do Campo; Pedra das Gamelas; janeiro 2013 |
2 comentários:
BOM TEXTO
Foto de muita qualidade
parabéns pelos dois
Obrigada, Platero.
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