Em 1911, quando a República ainda andava de fraldas, o ano agrícola no Alentejo foi particularmente mau, sobretudo nos campos da margem esquerda do Guadiana. Milhares de camponeses sem terra viram assim a sua pobreza endémica agravada pelo desemprego e pelo abandono dos solos produtivos por parte de muitos lavradores. Encurraladas pela miséria mais extrema, 1451 pessoas (547 homens, 373 mulheres e 531 crianças) viram-se compelidas a aceitar a proposta de emigrar para o Hawai (então designado como Ilhas Sandwich), com a promessa de uma terra fértil e de trabalho bem remunerado para todos. Nunca, até então, o Alentejo tinha visto uma migração populacional assim. A tal ponto que as principais publicações da época dela dão notícia.
Numa foto-reportagem com o veemente – e pertinente - título de “Os que a fome escorraça” pode ler-se que “Os Homens, mulheres e crianças alentejanas que emigram, quase um milhar, num êxodo de misérias, passaram na cidade, do Tejo para os casebres onde as alojaram, deixando um rastro de condolências”, até embarcarem no navio Orteric, que os levaria ao destino final: Honolulu. Nela são descritos como uma “legião meia sonâmbula, que passava sem uma palavra, carregada com os sacos onde ia toda a sua fortuna” (In “Ilustração Portuguesa”, 6/3/1911), perseguindo um sonho ameno, ainda na ignorância do duríssimo trabalho que os esperava, sob um sol ardente e numa atmosfera carregada de humidade, colhendo a cana do açúcar ou arrancando blocos nas pedreiras. Muitos foram forçados a desistir e a procurar melhor sorte nos campos dos Estados Unidos. Poucos regressaram à terra natal. Em 2000, numa reportagem publicada no Independente, o jornalista Paulo Barriga conseguiu ainda localizar o filho de uma destas famílias emigradas, nascido já no Hawai, mas forçado a regressar quando o pai sofreu um grave acidente de trabalho.
No ano seguinte, 1912, uma segunda vaga de emigrantes haveria de partir no vapor Harpalien em direção a Honolulu. A revista “Brasil-Portugal” explicava, à época, que este fluxo migratório era inevitável e que se manteria “enquanto uma funda transformação da vida social não destruir as causas que [o] produzem”: “Miséria, miséria, miséria. Do berço à cova. Olhos que secaram de chorar todos os prantos, bocas crestadas, ao nascer, pelo vento da adversidade, e que nunca floriram num sorriso feliz.” Vidas vulneráveis, portanto. À mercê de engajadores sem escrúpulos, de sorriso melífluo e palavra fácil, com promessas de uma vida melhor num “eldorado” longínquo.
Em 2011, estamos a viver a repetição deste cenário de crise e de empobrecimento generalizado e a assistir, por isso mesmo, a uma nova vaga de emigração: só este ano emigraram já mais de cem mil portugueses. Vaga migratória distinta em alguns aspectos, pois muitos dos que agora partem são até bastante qualificados, e fazem-no porque querem alargar horizontes e vivências profissionais e/ou pessoais, mas semelhante naquilo que é mais fundamental, já que para a grande maioria dos que saíram, o país não tem sequer um futuro condigno para lhes oferecer, quanto mais as condições para que realizem todo o seu potencial. Mantêm-se, pois, estranhamente actuais as palavras escritas na imprensa de há cem anos.
Os engajadores de hoje é que já não são os mercenários solitários que farejavam a miséria pelos campos fora, a soldo dos governos interessados na contratação de mão-de-obra barata. Cem anos depois, os engajadores que nos aliciam a emigrar são os que agora governam o país e fazem-no em direto na televisão para que ninguém tenha dúvidas. Cem anos depois da República – e em termos de desenvolvimento sócio-económico - estamos praticamente no mesmo sítio, ou talvez até estejamos agora num sítio bem pior (UE) pois, na verdade, desta “república” assim (des)governada, parece-me que já nem bananas podemos esperar.
Emigram os mais jovens, ficam os velhos encostados às paredes a entristecer lenta, mas inexoravelmente, como o país.