Chamava-se Identidades e tinha como objectivo “a inventariação, valorização, promoção, divulgação e transmissão de saberes e tradições relacionadas com o cante alentejano, as artes do espectáculo, as práticas alimentares e outros aspectos marcantes da identidade alentejana”.
Concebido por iniciativa da Direcção Regional de Cultura do Alentejo implicava um conjunto alargado de protocolos com diversas entidades (juntas de frequesia e colectividades locais; a Confraria Gastronómica do Alentejo e a Unione Delle Universitá del Mediterraneo) e parcerias com 9 municípios, cada um responsável pelo desenvolvimento de áreas temáticas específicas:
Portel – Território, paisagem e identidades;
Borba – Teatro tradicional (Bonecos de Sto. Aleixo, presépios do Norte Alentejano);
Ourique – Viola campaniça; Alcácer do Sal – Cantes de Improviso (ou ao Baldão);
Serpa – Cante a vozes;
Arraiolos - Têxteis alentejanos;
Beja – História oral do Alentejo;
Alandroal – Festa de Santa Cruz da Aldeia da Venda;
Reguengos – Festa de Santa Cruz e dança da pinha.
Nem sequer vou perder tempo com considerações sobre a cor política dominante neste conjunto de municípios até porque, para o desfecho final, e ao contrário do que é mais habitual por cá, não valeu de muito.
2. Um programa de financiamento
A proposta inicial previa um investimento total de 1.254.480€ para dois anos (2010-011), com uma comparticipação de 878 mil euros do FEDER, cabendo ao Orçamento de Estado assegurar a restante verba. No rasto da onda de entusiamo levantada pela candidatura do Fado a património imaterial da UNESCO, o projecto colheu pareceres muito positivos e/ou favoráveis das diversas entidades envolvidas na sua avaliação: o Inalentejo e o Instituto dos Museus e da Conservação/Ministério da Cultura que o considerou como sendo de “grande relevância para o enriquecimento do panorama patrimonial nacional”. Porém, em janeiro 2010, já com a crise financeira a subir de tom, o Inalentejo suspendeu a sua aprovação alegando o “elevado montante financeiro associado” e solicitou à DRCA a reformulação da candidatura.
A partir daqui as coisas enredam-se: uma nova direcção da DRCA implicou a aposta em rumos distintos e o desinteresse pelo Identidades (quanto mais não fosse porque era acalentado pela direcção entretanto caída em desgraça).
Num parecer datado de Julho 2010 o o próprio Inalentejo confirma que foi a ausência de uma “resposta formal” por parte da DRCA ao pedido de reformulação que motivou a sua decisão final de não aprovar da candidatura. Logo em Agosto a DRCA convocou as empresas e particulares a quem já tinha adjudicado e até, nalguns casos, pago serviços como digitalização de documentos ou a gravação de som e imagem, para negociar as indemnizações devidas pela revogação dos contratos assumidos, num total de 91.931 €. A esta soma acrescem os 78.249€ já pagos pelo serviços prestados. Sobre todas estas decisões e suas implicações para o projecto Identidades os muitos parceiros envolvidos nunca foram sequer consultados e não receberam até hoje (ao que parece) qualquer justificação ou explicação oficial, numa atitude de sobranceria muito característica da “onda rosa” que o governo PS/Sócrates cavalgou nestes últimos tempos.
Como em tantas outras coisas mais uma vez se preferiu pagar para “não fazer”, desaproveitando-se ainda por cima o trabalho já feito e o dinheiro pago por ele (78.249€);
Tudo parece indicar que se deixou cair para não ter o trabalho de refazer e de ajustar de acordo com os condicionalismos entretanto surgidos, ainda que seja quase do senso comum que um projecto desta dimensão e com este número de entidades envolvidas teria forçosamente que dar sempre muitíssimo trabalho e grandes “dores de cabeça” aos seus responsáveis e implicaria muitas e diversas reformulações ao longo do tempo.
Assim se desaproveitam, mais uma vez, avultados fundos comunitários (neste caso do FEDER): 878 mil euros é muito dinheiro, sejam quais forem as circunstâncias. Dada a natureza e o valor intrínseco do projecto (já amplamente reconhecido e validado), ainda que fosse necessário fazer ajustamentos, as verbas atribuídas seriam sempre muito elevadas e permitiriam fazer um bom trabalho, desde que para isso houvesse vontade.
E, por uma vez, até parece que o objectivo mais difícil de alcançar – a mobilização de vontades e de pessoas/entidades para um projecto cultural comum – estava garantido à partida. O vazio em que o projecto caíu é, por isso mesmo, duplamente gravoso: desmobiliza os que nele já estavam envolvidos e cria resistências e desconfianças face a uma eventual tentativa de o retomar no futuro.
Quanto à comparticipação obrigatória do Orçamento de Estado, não teria sido possível tê-la negociado em parte com os municípios envolvidos? Basta pensar na seguinte equação: quanto é que os nove municípios parceiros gastam anualmente em certas coisas como almoços, jantarinhos e quejandos? E o próprio Estado, quanto gasta por ano em despesas inúteis e escandalosamente sumptuárias, tanto em épocas de crise como de abundância?
A responsável por esta decisão e (ainda) pela própria DRCA alega em seu favor que poupou 204.107€ ao erário público, esperando que, no actual contexto de histeria de cortes e cobranças, a coisa pegue. Contudo, face à relevância do projecto em si e às reais possibilidades de criação de novas oportunidades culturais e económicas que ele poderia representar este é, quanto a mim, um argumento muito questionável em alguém com tamanhas responsabilidades.
Outra questão que me intriga é a ausência da cidade que não só, mas também, por ser “património da humanidade”, nunca tem sequer disfarçado a ambição de ser uma espécie de “capital cultural” do Alentejo, pelo menos em época de campanha eleitoral. E estranho sobretudo devido à “cor” dominante no mapa de municípios nele envolvidos
Moral pouco edificante deste “desistória”: a sorte desta gente é o povo ser sereno e andar muito (pre)ocupado com a sua “vidinha”. Caso contrário, haveria uma coisa chamada prestação de contas ou “accountability”, até porque dinheiro do erário público foi efectivamente gasto para... nada.
A sorte do património cultural imaterial alentejano é haver gente que, distanciada de projectos megalómanos e inúteis, ama de facto estas terras da sulidão de uma forma sincera e desinteressada e não tem medo de meter pés ao caminho para construir essa tal “identidade alentejana”. E já que falamos de cante alentejano é bom conhecer um projecto musical chamado 4uatroAoSul. É graças a gente assim que a polifonia, para além de ser coisa verdadeiramente de cá, também é “do mundo”.
Observ. O artigo completo é da autoria de José António Cerejo, foi publicado ontem no Público e pode ler-se aqui.
Sem comentários:
Enviar um comentário