domingo, 21 de agosto de 2011

O rescaldo dos exames nacionais de português é que “já comessa a irritarme”*

Todos os anos, sobretudo no rescaldo dos resultados exames nacionais de Português e Matemática, surgem nos media as mais variadas teorias, explicações, propostas e até “bitaites”, como assume hoje, numa crónica do DN, o jornalista Paulo Farinha, para defender a inclusão no currículo do ensino básico de um nova disciplina chamada “gramática do engate e da conquista”. Justifica-a, e à sua apelativa designação, dizendo que “se eles não aprendem a escrever correctamente, além de não arranjarem emprego, cada vez terão mais dificuldade em arranjar namorados e namoradas.” Vai mesmo ao ponto de antever que “no futuro seremos alvo de estudos sociológicos por termos uma geração de solteiros que não sabem escrever «amo-te», «sinto a tua falta» ou «faz-me um filho», trocando-os por «amote», «cinto a tua falta» ou «fásme um filho».

Ainda a recuperar da desilusão de ter visto três anos de trabalho duro na escola esfumarem-se em resultados pouco mais do que medianos e do choque de ter corrigido 50 quase indescritíveis provas nacionais de Língua Portuguesa não fiquei indiferente a estes argumentos, claro está. Contudo, eles só fazem sentido para nós que estamos numa faixa etária acima dos 35 (mais coisa, menos coisa) e ainda temos a noção e o instinto do “erro ortográfico”, algo que esta geração desconhece. Muito mais se poderia acrescentar sobre as múltiplas e complexas causas de tudo isto, mas já não tenho paciência e também ninguém está muito interessado, por isso, abrevio a coisa: a partir de Setembro, os alunos do 3º ciclo terão mais meio bloco semanal nos seus horários de Língua Portuguesa, o que somará um total de 90+90+45 minutos.  Digamos que é a versão ministerial do tal módulo de “gramática do engate e da conquista", mas o grande problema continuará a ser idêntico: e os alunos, estão dispostos a trabalhar mais para aproveitar esse tempo extra que lhes é proporcionado? e a escola tem meios, ou melhor, autoridade, para os fazer trabalhar? (não esquecendo aqui, claro, a legitimação dessa mesma autoridade por parte dos próprios pais).

Apenas quero sossegar as angústias do jornalista esclarecendo que esta malta, apesar de escrever como fala, desenrasca-se nos e-mails, no Messenger ou no Facebook tão bem ou melhor que o Zézé Camarinha lá na praia da Rocha com as cámones. E isto porque, do outro lado, o/a destinatário/a dessas mesmas mensagens é alguém exactamente igual em termos de proficiência linguística. Por isso, a triste verdade é esta: na geração que agora realizou os exames nacionais ninguém se apercebe que “do lado de lado de lá do fio da comunicação – mesmo que seja wireless – estava um zero à esquerda em gramática” porque, na verdade, dos dois lados do fio da comunicação há dois zeros à esquerda em gramática.

Nós, ainda escolarizados num tempo em que, apesar de tudo, era necessário trabalhar, estudar e ler alguma coisa, é que sentimos “um arrepio na espinha ao ler um sms ou e-mail mal escrito, oriundo de um potencial candidato a qualquer coisa”. O “potencial candidato” não acha nada porque não tem consciência de que escreve como fala, daí também não sentir necessidade de se (auto)corrigir. Nós é que sentimos necessidade de o corrigir a ele. Aliás, nem é preciso desperdiçar muito tempo no Facebook para perceber até que ponto as novas gerações escrevem com os pés e tratam a gramática a pontapés (demasiado futebol?).

Paulo Farinha remata a sua crónica dizendo que “Entretanto, nem tudo são más notícias: a um mês do início do ano lectivo e com o novo acordo ortográfico prestes a entrar definitivamente em vigor, talvez passemos a fazer vista grossa aos erros, por não termos a certeza do que está certo”. Com esta opinião concordo sem reservas e vou até mais longe: se acreditasse em teorias da conspiração, diria mesmo que esta é a decisão política que faltava para transformar de vez o nosso sistema educativo numa espécie de versão simplificada do caos: depois das flexibilizações da avaliação, da assiduidade, da disciplina e da exigência, a da ortografia. Na verdade, a partir do próximo ano lectivo, o português escreve-se oficialmente como se fala e isso, dizem-nos - a nós, professores - é uma coisa boa, moderna até. Vamos esperar para ver o que nos dizem - a nós, professores - no rescaldo dos exames nacionais dos próximos anos.

 
* Título da crónica publicada por Paulo Farinha no Notícias Magazine (nº 1004, 21/8/2011) e intitulada “Erros de português? Iço já comessa a irritarme”, que pode ler-se aqui.

2 comentários:

Micha disse...

Este Paulo Farinha é mesmo bom! Sou leitora assídua das suas crónicas na Noticias Magazine.

FM disse...

Concordo e julgo que, nesta Crónica, ele põe o dedo na ferida, como se costuma dizer.