domingo, 26 de fevereiro de 2012

Artur Cruzeiro-Seixas; Sem título; 2001
Que memórias vestirei hoje? A camisa transparente sem cheiro nem sapatos, o casaco de pedra sem veios nem veias, fechando a imensidão que as garças sobrevoam? Ou o frágil e semi-esquecido capote de cera derretendo ao frio de um dia com fronteiras? Quem inventa os meus sonhos? Quem lhes retoca a lógica que não pára de mudar? Porque são só meus? Os cegos sonham sons com os dedos? Serão verdadeiras as memórias? Mais que os sonhos penetrando nas fendas da realidade?

Há dias que começam nos pés, na biqueira das botas, mais propriamente, depois sobem até à cintura e aí se quedam esuqecidos das mãos. Outros começam lá bem alto e desfazem-se em poeira polvilhando o chão com a sua morte, outros vestem-se de relva e passam o dia sentados, sem nada por dentro nem fora, outros trespassam-nos, nem reparam que existimos, de luz total nem o vento nos sente e esquecemos todas as mentiras. Há fatos de lodo para sair à noite, redes podres agitando-se à passagem de fantasmas, há dias sorridentes a que só apetece arrancar os dentes, dias vestidos de noite, contaminados com caspa de estrelas, dias de pedra com nomes de pessoas inexistentes gravados no âmago, dias com chapéu entre pinheiros, demasiado ocupados para existir. Dias sem dor, cor, sabor ou penteado, dias cabados com um fato por estrear, dias intermitentes, sem botões, impossíveis de despir e noites que inventam histórias, memórias ainda por cumprir.

Zé Gandaia, 2009 (texto-performance realizada na Galeria Lobo-Mau em Arraiolos, em 10 de Junho de 2009)

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