quarta-feira, 9 de maio de 2012

Deambulação no piso escorregadio da restauração lisboeta

Anthony Bourdain veio a Lisboa e o resultado já está disponível na rede. Antes, já tinha andado pelos Açores e pelo Porto e também por aqui. Quando vejo os programas de Bourdain é sempre ao seu polémico, mas excelente, Cozinha Confidencial - Aventuras no Submundo da Restauração (Lx: D. Quixote, 2005) que regresso: "Peguei-lhe [numa ostra] com uma mão, inclinei a concha na minha boca conforme as instruções de monsieur Saint-Jour, agora radiante, e com uma dentada e uma chupadela, enfiei-a pelas goelas abaixo. Sabia a água do mar ... a salmoura e a carne... e, de algum modo..., sabia ao futuro.
Agora tudo era diferente. Tudo.
Não tinha apenas sobrevivido - tinha apreciado.
E soube logo que aquela era a magia cuja existência já tinha percebido, mas apenas de uma forma vaga e decepcionante. Estava agarrado.
(...)
Tinha aprendido uma coisa. Visceralmente, instintivamente, espiritualmente - e mesmo, de uma forma ténue mas incisiva, sexualmente - não havia volta para trás. O génio saíra da garrafa.  A minha vida de cozinheiro, e de chefe, começava ali.
A comida tinha poder." (p. 27-28)

Todos os episódios de "No Reservations" são, no fundo,  a continuação desta epifania inicial. Nada sei sobre o impacto económico que a sua exibição possa ter no turismo dos países que visita, nem me parece que a promoção turística desses mesmos países seja o seu objectivo principal (para irritação de muitos, certamente). Eles são, sobretudo, uma espécie de road trip pessoal e instransmissível para divertimento e proveito do chefe e dos que com ele partilham a viagem. Tudo o resto será por acaso e por acréscimo.

Claro que a abordagem de Bourdain, entre o cínico e nonchalant, não agrada a todos, claro. Aqui se fala do passado, sim, mas para que Bourdain compreenda melhor o sítio e as pessoas. De forma quase previsível, também se fala de economia e de crise. E come-se bem. Muito bem mesmo. Pela mão de chefs jovens, inspirados e entusiastas da boa cozinha portuguesa, mas que ainda estão a construir o seu currículo. Isso é, para mim, o melhor de tudo. Pelo meio, claro, as recorrentes visitas aos mercados para conhecer os produtos locais e também os obrigatários episódios folclóricos da pesca e afins em que, Bourdain, aparece sempre como o desajeitado que diz piadas, mortinho por regressar ao seu meio natural: a degustação e a boa conversa à mesa.

Este episódio do No Reservations - Lisboa é, à semelhança de todos os outros, essencialmente uma celebração daquilo que, nas suas próprias palavras, Bourdain qualifica como "um longo caso de amor, com momentos tanto sublimes como ridículos" (Idem, ibidem). É sobretudo por esse genuíno, apaixonado e ecuménico amor à comida, seja ela de que nacionalidade for - que vale a pena ser visto. E também pela música, que é da melhor que temos por cá.


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