terça-feira, 8 de maio de 2012

A Sinfonia do Sul à solta pelos campos...

... numa escrita  tão fresca como no dia em que foi publicada, sensorial e intensa como as terras que descreve e que, teimosa como a charneca que a inspira, resiste ao pó dos tempos.

Pilriteiro (Imagem daqui)

"Abril - Sinfonia da Primavera

Eu bem na sinto! Eu bem na sinto! apesar das fuligens do céu mal humorado, e da ventania que me apupa, através das frinchas das janelas. Uma pulsação vigora as alamedas, nas ascendências inexauríveis da seiva, rebentando em folhagens de contextura fina, por forma que já não é ficção o caso do homem que ouvia crescer erva nos campos, visto que eu há quinze dias oiço, no recanto de parque aonde vivo, sob uma umbela vermelha de paisagista, o burburinho da natureza que se revigora e emplumesce, numa dessas orgias de cor que faziam rir o olho azul de Rousseau, e punham emoções na palidez fatigada de Huet, o paisagista da ilha verde de Seguin.

A esta hora, por esses campos, nem vocês imaginam o que os melros dizem de alegre, e o que as borboletas vivem de contentes. Os murmúrios da água, que pelos regatos vai, como um sangue robusto, espalhando juventudes na cultura, dizem às velhas árvores histórias duma suavíssima poesia; e pelos ramos tufados de verdura húmida, tenra, tamisada de cintilas solares, entra a repovoar-se a cidade dos ninhos, grande cidade moderna, com avenidas, concertos, five o'clock, toilettes de plumas, e exibições de caudas roçagantes. Ontem me dizia na tapada um velho pintassilgo...

E por esses pomares, entre sebes de silvados e canaviais, que florações simpáticas, feitas com gotinhas de néctar e salpicos de sangue arterial!

Conhecem talvez o pilriteiro? É um arbusto dos valados, peculiar das regiões montanhosas do Alentejo, que se defende com os espinhos de que se arma, e não gosta de habitar jardins. Transplantados, não produz flor. Tem uma folhagem pequena, curta, verde retinto, mui recortada nos bordos, e agora na Primavera, esbracejando sobre as barreiras, tolda os pegos com caramanchéis duma vaporosidade incomparável. A sua flor é o que há de mais mimoso, mais pequenino, mais aéreo; uma joiazinha coquette, que antes diríeis insecto, pela vivacidade e esbelteza da figura. Qualquer ramito conta por milhares as florações, e dá em pleno país do sol a fresca sensação duma neve caída em flocos, sobre cada proeminência de haste. Quantas vezes, folheando Madame Chrysanthème, que Myrbach e Claudius Popelin vêm de ilustrar, eu pensei nesta esquecida floração do pilriteiro, que não figura nos álbuns, nem inspira os desenhistas, e todavia resume na sua pureza o que de mais belo possa haver, como motivo ornamental, para a ilustração de livros e jornais.

- Eu bem na sinto! eu bem na sinto!"

Fialho de Almeida, "Pelos Campos" (excerto), In O País das Uvas (1893). Lx: Edª Ulisseia, 1987 

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