Esta humilde sarjeta estremocense e o seu apelo, simultaneamente crítico e irónico, fez-me recordar o satírico diálogo de"Os Relógios Falantes", publicado por D. Francisco Manuel de Melo em 1654. Nele o Relógio da Aldeia e o Relógio da Cidade discorrem sobre os variados males e vilanias do mundo e chegam sempre à mesma conclusão: uns pagam pelos outros, regra geral os mais fracos e os que em nada contribuiram para criar esse mesmo mal.
"R.C. - (...) Como é o nome de Vossa Mercê?
R.A. - Sou, com perdão, o Relógio da Vila de Belas (...). Tenho feito a minha obrigação nomeando-me; fazei vossa cortesia correspondendo-me. (...)
R.C. - Quem gostareis vós que eu vos saia? Sou esse cansado, esse negro, esse maldito Relógio das Chagas, de Lisboa.
R.A. - Chagado e ferrugento vejo eu V. M., para ser tão grande e tão antigo cortesão, de quem a fama publica mil galantarias.
R.C. - Ó saloio, por bom modo me desonrais de mentiroso!
R.A. - E vós a mim de vilão com bem mau modo!
R.C. - Por isso se diz que não há alfaiate bem vestido. Nunca vereis menos cortesia que na corte. Anda o mundo desconcertado e o peor é que nos põem a nós a culpa.
R.A. - Essa manha sempre ele a teve, e muitas vezes, cá pelas minhas mossas de ferro, hei notado que de contínuo os baixos pagam os encontros dos altos, que é justiça de canhoto ou esuqerda justiça. Opõem-se lá no céu dois planetas, eclipsa-se o sol ou a lua, e nada de tudo aquilo prejudica ao céu. Pagam os campos, as sementeiras e talvez os homens, as paixões que passam as estrelas no seu firmamento e os planetas em suas esferas, como se nós os atiçássemos. (...) Na terra é do mesmo modo; os homens desmancham o mundo, e os relógios têm a culpa."
Estremoz, 21/7/10
Transpondo a situação para este cantinho da cidade poderemos facilmente concluir algo de semelhante para os dias de hoje: os homens fizeram as porcarias e a sarjeta é que paga. Ou não fôssemos nós um povo de "brandos costumes", sobretudo no que ao civismo, e à sua ausência, diz respeito!
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