Fui ontem assistir ao mais recente espectáculo do Cendrev - “Se o mundo fosse bom o dono morava nele” - no Largo de S. Mamede. Lotação esgotadíssima em noite amena. Cenografia aparentemente minimalista: um misto de máscara e de luminária parece fixar-nos com olhos arregalados de espanto, de curiosidade por estar ali, diante de nós. Gostei sobretudo do pequeno detalhe dos candeeiros da iluminação pública envolvidos em sacos de plástico preto do lixo: simples, mas eficaz.
A máscara, depois de empurrada para o lado, revela dois músicos (também actores) que acompanham o espectáculo e deixa-nos perceber que, afinal, o cenário tem mais que se lhe diga, pois é preciso dominar bem a técnica de movimentar tantas vezes, e de forma tão coordenada, três tábuas colocadas na vertical. O cenário é partilhado, à vez e em simultâneo, por actores e por fantoches. As cenas vão-se sucedendo sem pausas, sempre acompanhadas pela música que também desempenha um papel importante, funcionando como uma espécie de fio de ariane que liga as cenas (aparentemente) descosidas. Os próprios ajustamentos do cenário foram integrados no espectáculo, acentuando a ideia de teatro de rua e assim marcando a transição entre as cenas, numa clara subversão da regra habitual.
A representação inicia e termina com os actores a cantarem ao estilo "revista à portuguesa". Pelo meio há uma viúva alegre que ainda mal pensou em “dançar” e já está a ser levada para o inferno pelo próprio Satanás; um compadre armado em conquistador que mede forças com Satanás; dois compadres, um aparentemente simplório e outro declaradamente espertalhaço e vingativo; um Padre que benzia tudo menos cachorros mas que, tratando-se do cachorro do todo-poderoso coronel lá da terra, abre uma excepção, concluindo que, afinal, “não tem nada de mais”; para terminar com uma vicentina conversa de (des)enganos entre Todo-o-Mundo e Ninguém, atentamente seguida por duas “lâmpadas” dos infernos que tudo iluminam por dentro.
Claro que o público riu e muito perante as (des)aventuras da viúva quase-alegre que, de tão feliz por se ter livrado do traste do marido, se diz capaz de dançar até com Satanás, e do atrevido compadre que a quer conquistar, ou seja, levar para a cama, sempre contadas com sotaque alentejano. Também os dois compadres – o que quer enganar e o que já enganou, pondo, como se diz à boa maneira lusitana, os cornos ao padeiro levantam gargalhadas, bem como o canónico e submisso padre, que obedece que nem cachorro à vontade dos poderosos lá do sítio.
O problema para mim é que tudo isto, por muito bem representado que seja, por mais interessante que seja a cenografia e harmoniosa a música, não passam de chavões e preconceitos batidos e gastos de uma certa cultura popular que persiste, aleivosa, nos espírito de muitos: as mulheres são todas umas desavergonhadas, merecedoras, por isso, dos piores castigos, os homens são todos, ou tontinhos que não alinhavam dois pontos certos, ou ressabiados com desejos de vingança que, claro está, acaba por recair sobre o próprio (depois de enganar o padre, a informação de que o coronel se aproxima e o pânico que isso gera nos dois compadres é sintomático disso mesmo). Mas o público ri, claro. Ri sobretudo das brejeirices, mais por hábito, do que por compreensão da crítica e da ironia subjacentes ao texto. E isso é de lamentar. Como é de lamentar que, para chegar ao público, o Cendrev caia neste facilitismo um tanto bacoco e de riso fácil.
A complicar tudo ainda mais está o salto linguístico que o público é obrigado a fazer do português popularucho e brejeiro (alentejano no seu melhor estilo) para o medieval e subtilmente irónio do excerto do Auto da Lusitânia (1531) de Gil Vicente que constitui a cena final: Todo-o-Mundo e Ninguém. E assim, a parte da peça, que se pretendia que funcionasse como moralidade e que poderia fazer perceber como, afinal, as cenas iniciais têm um pouco mais do que brejeirice pura e dura, fica comprometida. Porquê? Simplesmente porque o público não entende. Não entende o vocabulário (o discurso é claramente erudito) e muito menos a sintaxe medieval, ainda por cima sendo o texto dito pelos actores num ritmo, quanto a mim, demasiado rápido.
Não foi por acaso que, no fim, ouvi um espectador que ficou sentado atrás de mim a comentar com a esposa: “a partir duma certa altura, não percebi muito bem o que eles estavam a dizer”. Ora é isto mesmo: representar Gil Vicente, hoje, para um público que não tem hábitos de leitura, ou que se limita a ler os best-sellers da literatura dita light, é como falar chinês ou algo assim. E mesmo para os jovens que ainda têm o “Auto da Índia” nos seus programas escolares, esta compreensão linguística não está mais facilitada, até porque, para concluirem o 9º ano de escolaridade, não precisam de saber coisa alguma sobre Gil Vicente. É lamentável, mas é verdade.
Por isso, o espectáculo que vi ontem deixou-me assim um gosto amargo: gostei e não gostei. Acho que é, sobretudo, uma boa possibilidade e uma boa amostra da arte de representar com poucos meios para conseguir arrancar umas risadas do público. Pena é que não consiga ser mais do que isso.
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