terça-feira, 30 de novembro de 2010

Os pouco(s) Direitos Humanos

Com a aproximação do dia 10 de Dezembro, data do aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem -  assinada em 1948 - multiplicam-se um pouco por todo o lado as iniciativas que, não deixando de a celebrar, procuram também lembrar o muito que ainda falta fazer para garantir a sua verdadeira universalidade: hoje, por exemplo, assinala-se o dia das “Cidades para a Vida – Cidades contra a Pena de Morte”. São 22 as cidades portuguesas que se juntam a este movimento internacional contra a pena de morte que envolve em diversas actividades simbólicas 1184 cidades de 81 países.

Perante o cortejo de horrores em que se transformou o nosso mundo só podemos concluir que, em matéria de direitos humanos, falta fazer quase tudo. Não sei se devemos celebrar, se devemos chorar de vergonha perante aquilo que fazemos todos os dias ao nosso semelhante, ou melhor, a milhões dos nossos mais fracos e indefesos semelhantes.

Os Estatutos do Homem

(Acto Institucional Permanente)


Artigo I — Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida e, de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II — Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III — Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV — Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V — Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI — Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII — Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII — Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX — Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X — Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI — Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII — Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII — Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final — Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

Thiago de Mello, Santiago do Chile, Abril de 1964

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A música também é uma "Estrada" assim

A escrita também tem morada

A casa que Eduardo Lourenço apelidou de "castelo de sonhos de toda uma geração" de autores como Fernando Namora, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Rui Feijó e Afonso Duarte (a geração do Novo Cancioneiro) renasceu agora em Coimbra como "Casa da Escrita" (Rua Dr. João Jacintho, 8).

Desde 2007 que havia em Ponta Delgada algo de semelhante - a Morada da Escrita - Casa Armando Côrtes-Rodrigues - mas, no Continente, é (tanto quanto sei) a primeira no género. É um projecto ambicioso este que pretende fazer da antiga residência do poeta João José Cochofel um espaço único no panorama cultural do nosso país: residência de criadores, ponto de encontro entre o público e os escritores, biblioteca, locais adequados para escrita e leitura, dinamização de actividades direccionadas para o público escolar, livraria, jardim de acesso livre...  A ideia parece-me, de facto, boa. Vamos ver é se há dinheiro para a levar em frente com as condições adequadas.

Só nos resta esperar que este "Pórtico" aberto para a escrita não se feche ou, como escreveu João Cochofel:

Outros serão
os poetas da força e da ousadia.
Para mim
— ficará a delicadeza dos instantes que fogem
a inutilidade das lágrimas que rolam
a alegria sem motivo duma manhã de sol
o encantamento das tardes mornas
a calma dos beijos longos.
(Um ócio grande. Morre tudo
dum morrer suave e brando...

Que os outros fiquem com o seu fel
as suas imprecações
o seu sarcasmo.
Para mim
será esta melancolia mansa
que me é dada pela certeza de saber
que a culpa é sempre minha
se as lágrimas correm ...

in "Obra Poética"

domingo, 28 de novembro de 2010

A vida e a arte

Abbas Kiarostami declarou recentemente, a propósito do filme “Cópia Certificada”, que “A mais elevada forma de arte é a arte de viver. Mas a arte pode transformar a mais grosseira “arte de viver” numa forma mais elevada e ainda mais verdadeira do que a originalidade da vida.
Palavra de realizador de cinema que, apesar de tudo, sabe como a vida sem mediação da câmara de filmar tem, às vezes, muito pouco de artístico.

Um halo de limpa solidão bem no meio da rua

A D. Alice vive numa daquelas ruas sem história do centro histórico eborense. Uma rua tão anónima que permanece até hoje ignorada pelos guias turísticos e, tanto quanto sei, pela própria literatura toponímica que, com o beneplácito da classificação da cidade como “património da humanidade", tem sido publicada nestes últimos tempos. Veio morar para Évora numa tentativa de escapar à pobreza rural em que nasceu há já muitos anos. Aqui, entre outras tarefas, trabalhou nas limpezas durante a maior parte da vida. E tanto se empenhou nessa actividade que, a partir de certa altura, passou a viver para limpar.  Libertada primeiro por uma viuvez precoce, e depois pela reforma, dos horários e obrigações domésticas como compras, refeições, roupas, saídas ou visitas familiares a D. Alice ficou, de facto, disponível para limpar a casa de forma metódica e ininterrupta. A tal ponto que, com o passar dos anos, deixou até de cozinhar por ver nessa tarefa não só uma perda de tempo útil para as suas limpezas, mas sobretudo uma fonte de contaminação da casa. Para manter os níveis quase absolutos de higiene e arrumação viu-se também forçada a encontrar uma estratégia que lhe permitisse manter relações de convívio com a vizinhança mas garantisse, ao mesmo tempo, que ninguém  lhe entrava em casa para "sujar" o que ela limpava com tanto desvelo.

A lavagem da porta de entrada foi, desde sempre, a sua maior obsessão e a D. Alice aproveitou astutamente os seus padrões de exigência asséptica -  ou apenas a vontade de manter o epíteto de “porta mais lavada da zona, se calhar até da própria cidade e arredores” , como diziam  alguns passantes de forma irónica -, para comunicar com a vizinhança, sem chamar muito a atenção para a sua peculiar personalidade. Assim, enquanto ia lavando e esfregando o portado de mármore, às vezes durante horas seguidas, podia estar na rua para acompanhar em tempo real as idas e vindas dos vizinhos e interpelá-los de forma mais ou menos descarada para saber as últimas novidades da vida de cada um. E tão ocupada se manteve ao longo do tempo com essas duas actividades simultâneas - limpeza e coscuvilhice - que talvez nunca se tenha apercebido da perfeita inutilidade de tão árdua tarefa e da solidão que, com ela, estava a construir. 

Tal como todos os outros moradores da rua habituei-me, desde sempre, a entrar ou sair de casa sob o seu olhar perscrutador: dobrada, não interrompia a escovagem das pedras da calçada fronteira à porta senão quando avistava alguém que lhe despertasse verdadeiro interesse. Geralmente, este era proporcional ao número de novidades transmitidas. Julgo até que na cabeça da D. Alice sempre existiu uma espécie de hierarquia social que posicionava as pessoas conforme a quantidade e a qualidade das informações que lhe forneciam diariamente. Quem, enfastiado por aquela omnipresença, se limitava a dizer-lhe um seco “bom dia” e a seguir caminho apressado antes que ela tivesse tempo de disparar alguma pergunta inconveniente era ostensivamente proscrito da sua simpatia, quando não alvo da sua maledicência. Mesmo quando se ocupava das tarefas no interior da casa, D. Alice fazia questão de, ao mínimo sinal de movimento na rua, vir agitar freneticamente a bandeirola laranja do seu pano de pó, sinal inequívoco de que, mesmo ausente, se mantinha atenta às nossas actividades, por mais insignificantes que fossem. Ao longo dos anos, em consequência da vigilância cerrada sobre a vida alheia e das conversas cruzadas que foi alimentando com todos os transeuntes e habitantes das ruas vizinhas, arranjou um sem número de mexericos, intrigas e inimizades. Havia até quem a cumprimentasse apenas por receio das consequências da sua língua viperina.

A sua obsessão com a limpeza imaculada da porta foi sempre aumentando e alcançou níveis paroxísticos que tornaram a sua figura irritante, quase insuportável até. Muitos dos que antes a temiam – ou melhor, temiam a sua língua – acabaram mesmo por deixar de lhe falar e, à medida que foi perdendo interlocutores, foi-se esboroando também a barreira do respeito, ou do pudor, que ainda impedia alguns de comentar de forma jocosa aquele incessante labor higiénico em que ocupava já a maior parte do dia, em franco contraste com a "sujidade" da sua má-língua, praticada de forma contumaz e sem qualquer resquício de arrependimento. Até a família foi espaçando as visitas, devido ao óbvio incómodo que a D. Alice manifestava por ter que interromper a exigente rotina diária de limpeza para atender os visitantes e por ter depois que re-limpar tudo – com especial incidência no degrau da porta. Era como se as pessoas lhe conspurcassem a casa de tal forma que uma visita de apenas meia hora representava, pelo menos, um dia de trabalho sistemático e intensivo.

Com o decorrer dos anos, a sua coluna vertebral foi sofrendo como que uma adaptação “natural” à situação de estar dobrada quase permanentemente e, por isso, ela caminha hoje dobrada e com a cabeça ao nível dos joelhos. Embora fragilizada pela idade e pela doença, nada a impede de, pelo menos duas vezes por dia, cumprir o seu ritual diário de lavagem minuciosa do portado e das próprias pedras da calçada em frente da porta. Se juntarmos a isto a rigorosa manutenção da limpeza doméstica, julgo que a D. Alice apenas pára para dormir algumas horas por noite. E com pontualidade de relógio suíço, às sete da manhã, domingos e feriados incluídos, é invariavelmente o som áspero da sua vassoura de piaçaba que ecoa na rua e acorda de forma impiedosa a vizinhança. Quando todos ainda dormem, às vezes debaixo de frio intenso, tão dobrada que o cabo da vassoura a ultrapassa em altura a meio das costas, D. Alice varre sem parar até que dê por escoada toda a água entretanto vertida a baldes sobre a calçada. 

Vista assim, ao longe e de perfil, dobrada e como que trespassada pelo cabo de madeira em que se apoia, D. Alice  parece ter acabado por se transformar numa vassoura humana. Mas é esta a sua forma de garantir que, logo pela manhã, os primeiros a passar pela rua verificarão mais uma vez como aquela é, sem qualquer dúvida, a porta mais limpa das redondezas. Situação confirmada até por uma coloração distinta da calçada, uma espécie de halo semicircular que irradia da porta, fruto da lavagem, escovagem e lixiviação permanentes. É uma espécie de fronteira que separa dois mundos: o nosso e o da D. Alice que, de tanto ser esterilizado contra germes e bactérias, acabou por se tornar também ele estéril de pessoas e de afectos. Até os cães da vizinhança evitam marcar aquela espécie de terra-de-ninguém dos odores como se, instintivamente, percebessem a futilidade de tal acção. É, afinal, um halo de limpa solidão bem no meio da rua.

E, no entanto, vive feliz a D. Alice, pois conseguiu da vida exactamente o que mais queria e precisava: a atenção dos outros. Obteve até mais do que aquilo que se atreveu a desejar, porque o espanto que vê brilhar nos olhos dos que a observam - sejam amigos, vizinhos, familiares ou apenas gente que passa - é para ela a maior e melhor das recompensas, embora, onde ela veja admiração deslumbrada, não haja mais do que espanto e estranheza. É essa, talvez, a alavanca que a faz continuar, aos oitenta e muitos anos de idade, a levantar-se todos os dias de madrugada para lavar a porta. E é essa, certamente, a sua razão de viver.
Mas quando um dia, inevitavelmente, o som áspero da vassoura de piaçaba deixar de assinalar o começo da manhã, todos nós sentiremos a sua falta, apesar de tudo. Nesse dia, terá terminado a história de toda uma vida sem história (e a maior parte da minha também).

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Como aumentar o PIB nacional

Andam pouco inspirados os nossos (des)governantes! Já não sabem o que fazer para pôr ordem nas contas, nem como nos hão-de pôr a trabalhar cada vez mais para as podermos pagar. Cá vai uma excelente sugestão:

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Diante do monitor

O blogger está diante do monitor e escreve. A palavras tantas já não distingue se é ele que as escreve ou se são elas que o (d)escrevem e diz: mais do que meu, este texto sou eu. Olha as palavras-reflexo de si próprio, redigidas no espaço-tempo da escrita e reflecte sobre o perfeito jogo de espelhos que elas (também) representam. Relê-se e questiona-se: se alterar as palavras que me dizem, mudarei apenas o meu retrato ou mudará também alguma coisa em mim?
Contudo, este poder manipulador repentinamente (a)percebido nas palavras desperta nele medos antigos e decide quedar-se pelo parágrafo inicial do s(eu)-texto. Há lugares sombrios cobertos pela poeira do tempo que é melhor não perturbar, sedes que já não é  possível mitigar e dores que é preferível não (esc)re(vi)ver. A não ser que se esteja preparado para as consequências...



Diante do espelho


Norman Rockwell, Auto-retrato triplo, 1960
"O pintor está diante do espelho, não de viés ou a três-quartos, conforme se queira designar a posição em que costuma colocar-se quando decide escolher-se a si mesmo para modelo. A tela é o espelho, é sobre o espelho que as tintas irão ser estendidas. O pintor desenha com rigor de cartógrafo o contorno da sua imagem. Como se ele fosse uma fronteira, um limite, converte-se em seu próprio prisioneiro. A mão que pinta mover-se-á continuamente entre os dois rostos, o real e o reflectido, mas não terá lugar na pintura. A mão que pinta não pode pintar-se a si própria no acto de pintar. É indiferente que o pintor comece a pintar-se no espelho pela boca ou pelo nariz, pela testa ou pelo queixo, mas deve ter o cuidado supremo de não principiar pelos olhos porque então deixaria de ver. O espelho, neste caso, mudaria de lugar. O pintor pintará com precisão o que vê sobre aquilo que vê, com tanta precisão que tenha de pergunta-se mil vezes, durante o trabalho, se o que está a ver é já pintura, ou será apenas, ainda, a sua imagem no espelho."
José Saramago, Cadernos de Lanzarote - Diário III, Ed. Caminho

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O que (quase) já não está nas notícias

ou, quando vires as barbas do vizinho a arder, põe as tuas de molho.

Em tempos ditos de "vacas gordas" o dinheiro é tanto que, mesmo dissipado de forma duvidosa, ou mesmo ruinosa, lá vai chegando para tudo. Até mesmo para manter de pé o património histórico que serve de chamariz para o tão necessário turismo que equilibra de forma periclitante o PIB. O pior é quando as "vacas" fazem dieta. Quando o dinheiro escasseia e é preciso rigor, objectividade e, sobretudo, competência na sua gestão é que as coisas se tornam muito complicadas. Nestas ocasiões, para tapar de um lado, tem que ficar destapado do outro e não há volta a dar. E lá entra o património histórico em acelerada decadência, ou mesmo ruína, por falta de conservação. É o que já está a acontecer com muitos dos nossos monumentos mais imponentes. Alguns ainda não caíram porque vão aparecendo de vez em quando uns mecenas que pagam as avultadas contas da sua recuperação.

Temos muitas vezes tendência para pensar que estas coisas acontecem sobretudo por cá e que lá fora não é bem assim. Mas não é verdade. A prova disso está justamente num dos nossos parceiros europeus do sul - a Itália - que, em termos de património histórico, até tem bem mais com que se preocupar do que nós.

Pompeia, soterrada pelas cinzas do Vesúvio há mais de dois mil anos, redescoberta por acaso nos finais do séc. XVIII e esforçadamente escavada pelos arqueólogos desde então, classificada pela Unesco desde 97 como Património da Humanidade, recebe uma média anual de 2,5 milhões de visitantes e, mesmo assim, nada foi suficiente para evitar a derrocada da Casa dos Gladiadores. O edifício já não era visitável devido ao seu estado de degradação, mas os belos frescos nas paredes exteriores continuavam a atrair as atenções. Ao que parece as infiltrações das fortes chuvas do início do mês terão provocado o seu colapso e há agora muitos outros edifícios na cidade que apresentam também já sérios danos estruturais por falta de manutenção, como é o caso do Coliseu ou do Palácio Dourado de Nero.

Casa dos Gladiadores: foto de 1889
 
Casa dos Gladiadores: 2010; Foto Reuters
Ao que parece a notícia desta derrocada causou alguma consternação um pouco por todo o mundo - o que não é de admirar - e provocou também algum mal-estar aos responsáveis políticos italianos, agora acusados de não cuidarem devidamente do vastíssimo património histórico do país. Claro que, antes, como a acusação era apenas "interna" não causava mossa, mas agora, com as recriminações da comunidade internacional, a coisa muda um pouco de figura... De certa forma, o mal-estar também poderá dever-se ao facto de ela não deixar de ser simbólica: as fundações civilizacionais da Europa que estavam a esboroar-se em sentido figurado, começaram agora a ruir, em sentido literal.

Ainda nos choca, é claro (pelo menos a mim choca), mas é assim uma coisa "soft". Há agora outras preocupações mais pungentes que não requerem apenas atenção imediata, exigem toda a nossa atenção: a gestão diária das nossas pequenas "crises" pessoais e/ou familiares. Tudo o resto parece desfocado por uma névoa generalizada de indiferença, pelos vistos também ela global. Até porque, é claro, com o mal dos outros...
Este é, sem dúvida, um sinal dos tempos de crise que atravessamos mas é também, parece-me um prenúncio de que começamos a olhar para estes vestígios do passado histórico e cultural europeu de um outro modo. Há outros valores (nem melhores, nem piores, apenas diferentes) que se levantam nesta nossa sociedade globalizada (até a crise económica é global, dizem eles) em que, mais do que preservar o passado, andamos mas é dia-a-dia a tentar arranjar maneira de garantir o presente, que o futuro logo se vê se lá chegarmos. E o passado, olha, se não se aguentar de pé até que a crise passe, paciência. Assim numa perspectiva optimista de que haverá um "depois da crise". Certo é que, se tal existir, também no que se refere à questão do património cultural, seja ele "da humanidade" ou não, na Europa, nada voltará a ser como antes .

E é bom não esquecer que vivemos num país onde, bem antes da tal "crise" - já as pontes colapsavam  por falta de conservação, apesar da sua óbvia utilidade e necessidade. Muito mais facilmente hão-de começar a cair monumentos, agora que a dita cuja veio para ficar.

Autografia

sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

o meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa )
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha-férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente electrocutadas viva
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha
E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais
nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu
partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato grande!

Mário Cesariny

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Devíamos ser mais assim...

... capazes de, sendo especialistas numa área - no caso economia e jornalismo -  parafrasear Mário Cesariny - ou outro poeta qualquer - desta forma arrebatada. Falta-nos, de facto, uma razão assim nos dias todos iguais!

domingo, 21 de novembro de 2010

Coisas perdidas

... e não será por acaso que tudo aqui começa com a leitura de um livro... ainda em formato papel...

O futuro (i)material

Na sequência de uma postagem que aqui fiz sobre os novos formatos (i)materiais que o livro tem vindo a assumir em nome da proximidade com o leitor, reproduzo excertos de uma crónica recente de Jorge Marmelo sobre o mesmo tema e sobre a impressão que, aos leitores de livros de papel,  faz esta nova realidade que, tudo parece indicá-lo, será o futuro:

" Indivíduos mais clarividentes do que eu andam há um ror de tempo a anunciar o fim do livro enquanto objecto feito de papel e tinta, bem como a sua substituição por um dispositivo electrónico no qual se podem armazenar vários milhares ou milhões de ficheiros destinados à leitura, seja de poesia, ensaio, ficção, literatura técnica ou simples lixo. (...) Até há pouco tempo, estive inclusivamente convencido de que os e-readers pertenciam ao domínio da ficção científica, como os tubos de teletransporte, as viagens a Marte, a deslocação entre diferentes dimensões do espaço-tempo ou o Orgasmatron inventado por Woody Allen para o filme O Herói do Ano 2000. Mas depois vi claramente vista uma moça gordita a ler um livro electrónico na estação do metro da Trindade e convenci-me de que o futuro tinha, enfim, chegado. (...)
Acresce que alguém mais viajado se encarregou de me sossegar, garantindo que em Nova Iorque anda toda a gente com um e-reader na rua. Se a memória não me falha, aconteceu algo parecido com os tamagochi, os amorosos animais electrónicos que era preciso alimentar e tratar carregando em botões.
Sendo tão bota-de-elástico como qualquer pessoa que envelhece, estou convencido, ainda assim, de que o livro electrónico é um produto comercialmente muito mais promissor e viável do que eram os tamagochi. A possibilidade de ter toda uma biblioteca dentro de uma bolacha electrónica é seguramente muito interessante para qualquer indivíduo que não aprecie a companhia quieta de centenas de livros jálidos, amarelecendo em silêncio e cobrindo-se melancolicamente de pó.
O sol, escreveu Pessoa, "doira sem literatura", e "o rio corre, bem ou mal, sem edição original", pelo que não há nenhum motivo válido para que as pessoa ainda se enterneçam com certas mariquices antiquadas. (...)
Segundo já profetizou um inteligente, "a literatura não é feita de papel" e, portanto, não há-de faltar muito para que seja possível fazer download de vários milhões de terabytes literáriosdirectamente para o cérebro, previamente dotado de uma tomada USB biocompatível. Com o interface adequado, será mesmo possível dispensar-se, um dia, a de aprender a ler." ("Livros na Cabeça", in Público, 16/11/2010)

Ora o futuro parece, pois, promissor, para além de imaterial. Quem sabe até se não será possível, pelo mesmo processo, dispensar as escolas e os professores, gente inútil e que pouco faz. Assim se poupariam uns milhões largos na despesa pública e teríamos uma sociedade certamente mais eficaz e obediente. É até caso para supor que, no futuro, as próprias pessoas é que serão dispensáveis. Qualquer gadget tipo tamagochi fará bem melhor que qualquer um de nós... Tal como Jorge Marmelo, e no que aos livros, aos cd's e aos vídeos diz respeito, faço questão de continuar a ser muito bota-de-elástico. E o futuro que se lixe, ou melhor, para mim já está lixado de qualquer maneira, por isso tanto me faz. No entanto, não deixo de reconhecer que estes aparatos tecnológicos irritantemente bem desenvolvidos não deixam de ter vantagens, a começar pelo espaço que todos ganharíamos em casa...


sábado, 20 de novembro de 2010

A fraternidade também é feita de música assim

Victor Gama nasceu em Angola mas vive em Portugal desde meados da década de 80. Cria e cruza música e histórias através de instrumentos musicais muito particulares: o Acrux, o Galcrux, a Toha, o Dino e outros da série Pangeia Instrumentos.


Diz que “Este é um processo de criação musical no qual o instrumento é moldado pelos elementos que compõem a narrativa. Utilizo instrumentos que vão sendo refinados para criar música” como “Sol(t)o”, um espectáculo multimédia estreado em 2007 na Cidade do Cabo ou “Rio Cunene” criado para o Kronos Quartet e que estreou em Março no prestigiado Carnegie Hall de Nova Iorque.

“Rio Cunene” é um pouco a história recente de Angola, da sua cultura e das suas gentes, especialmente das crianças. E é justamente aqui que está diferença do projecto musical de Victor Gama. Nas províncias do sul de Angola, em aldeias remotas, as crianças viviam rodeadas por destroços da guerra - aviões, munições, cartuchos, tanques, etc. - que, com o tempo, começaram a transformar em brinquedos e em instrumentos musicais. O músico olhou para esses objectos e viu neles a reciclagem da violência feita pelas mãos daqueles que em nada tinham contribuído para ela: as crianças. Viu neles uma espécie de metáfora do que de bom ainda existe no ser humano e do seu potencial transformador.

In www.opais.net
Decidiu então juntar crianças com idades entre os oito e os doze anos, na aldeia de Xangongo, na província do Cunene, e fazer com elas um workshop de construção de instrumentos musicais: justamente os da série Pangeia. São alguns deles que tocam em “Rio Cunene” e em "Sol(t)o”. São pedaços de armas e veículos militares transformados para o bem, ou melhor, para a música que é uma das melhoras formas de expressão do bem. São instrumentos que levantam a voz e se fazem ouvir mais alto que os exércitos e os tiroteios. É com instrumentos destes que muitos dos melhores músicos angolanos de hoje começaram a sua carreira musical. Eles assumem-se sobretudo como mensageiros da paz e lembram a quem escuta os sons que produzem que a guerra existe e que devíamos, se fôssemos seres humanos decentes, acabar com ela.

Num mundo cada vez mais fechado e isolado no casulo do egoísmo projectos como este são, talvez, um sinal de esperança. São sobretudo um sinal de que a solidariedade ainda não é, para muitos, uma palavra vã. Mais do que apenas solidariedade este é, parece-me, um projecto de fraternidade, e de verdadeiro humanismo.


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A elegante vagabundagem

Aos 70 e tal anos de idade Leonard Cohen cumpre com brilhantismo as etapas duras de uma tournée mundial de quase duzentos concertos, incluindo o de Lisboa em Outubro passado. Por todo o lado salas cheias e o mesmo fascínio de sempre pela música, pelas palavras e pelo intérprete. Com a elegância (re)conhecida, Cohen celebra com o público a música e, no fim de contas, também a própria vida. O álbum agora lançado, "Songs from the road", constitui o registo para memória futura de todos esses momentos que Cohen viveu intensamente com o público.

Como escreveu Luís Maio, "Leonard Cohen ensinou-me algum inglês, muita poesia e várias estratégias de sedução, que me guiaram na adolescência. Regressou como minha banda sonora favorita nas temporadas de folia, copofonia e alguma libertinagem à entrada da casa dos 30. Serviu-me de conselheiro e sobretudo de consolo na época das dúvidas existenciais e dos tombos dos 40. Agora nenhum outro cantor é para mim mais familiar e me dá tanto prazer ouvir." Salvaguardadas as devidas diferenças subscrevo inteiramente estas palavras: pois a música de Cohen também tem sido a banda sonora de muitos dos meus dias e noites, já lá vão várias décadas.

Pode dizer-se de alguém que consegue tocar assim a vida dos outros que ganhou "O futuro".

  

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Mais algumas achas no fogo lento do tal (des)acordo ortográfico

Tenho cada vez mais razões para acreditar que o novo acordo ortográfico é, sobretudo, uma decisão de políticos que querem marcar o seu domínio no território apetecido da CPLP, leia-se as amplas possibilidades de negócio que se abrem em economias florescentes como a angolana. Por isso as razões apontadas por alguns para defender o dito acordo valem o que valem e às vezes nem é preciso um grande esforço para as desmontar. Há alguns meses referi aqui uma entrevista dada por Lauro Moreira, embaixador do Brasil junto da CPLP, durante a qual defendeu o acordo como uma necessidade premente para os editores e livreiros que se viam obrigados ao esforço suplementar de publicar segundo as distintas normas ortográficas de cada país o que, ainda segundo o embaixador, seria uma fonte de prejuízos para as empresas.

Assim de repente, para os leigos na matéria, até parece ser um argumento de peso. Mas verifiquei agora ao ler uma entrevista de Lucia Riff, que a coisa pode não ser bem assim. Disse então esta agente literária que representa os maiores nomes da literatura brasileira que o acordo ortográfico “Não vai mudar nada. Há muitos anos era comum que as editoras – portuguesas ou brasileiras – comprassem direitos para toda a língua portuguesa. Acontecia mais no Brasil. Exportavam-se 100, 200 livros para Portugal, ou vice-versa, e acabava. O livro não viajava mais do que algumas centenas de exemplares através de um distribuidor qualquer.” “Até que dei conta que isso era um erro gravíssimo. O editor brasileiro não estava vendendo absolutamente nada em Portugal. Nós estávamos matando o mercado, matando a possibilidade de o livro ser mais bem explorado e vice-versa. Em Portugal estavam fazendo o mesmo, matando livros que poderiam estar saindo no Brasil.” Decidiu então que, quando vendesse um autor/obra para o Brasil, seria para uma editora brasileira que imprimisse e vendesse no Brasil e para Portugal a mesma coisa.

Assim, segundo Lucia Riff, “O acordo ortográfico pode ter definido onde é que entram ou saem os acentos (...), mas a maneira de escrever, vocabulário, sensibilidade, isso você não transfere por nenhum acordo ortográfico.” Apontando para o novo policial de Tony Belloto - “No Buraco” - (comprado pela Quetzal na Feira do Livro de Berlim), diz ainda que se nele existirem palavras que têm um sentido completamente diferente em Portugal, o editor português vai ter de acrescentar notas de rodapé: “Tem palavras que vocês usam que significam outras coisas para nós. Nisso o acordo não interfere. Quanto ao mercado editorial, não ma parece que venha a ser afectado.”

Parece que, ao contrário do que alguns têm sugerido, os interesses económicos do mercado editorial lusófono - e das editoras portuguesas em particular - se jogam, afinal, num outro tabuleiro que não o do tal (des)acordo ortográfico. É então caso para perguntar: que interesses serve, de facto, este novo acordo ortográfico?

Nota. Excertos da entrevista publicada no Ipsílon, 5/11/2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Angolano, penseólogo, poeta e sofredor...

... mas podia ser um português...



E nem de propósito amanhã é o dia internacional dos "penseólogos", uns para levar mais a sério que outros...

Corpos que dançam ao sabor da música: património (i)material da humanidade

Depois do Tango em 2009,  foi agora o Flamenco. O Fado aguarda a sua vez de ser declarado património imaterial da humanidade, talvez no próximo ano. Em comum, nesta espécie de tripla videopostagem, o olhar de Carlos Saura.




terça-feira, 16 de novembro de 2010

Uma crise singular

A Europa vive uma crise singular: económica, sem dúvida, mas sobretudo civilizacional e cultural. De repente, nos media, Portugal e a Grécia aparecem sempre designados como países "periféricos", ou seja, à margem de, podendo até vir a tornar-se descartáveis. Mas "periféricos" relativamente a quê? Ao bloco de países centro-norte da Europa, verdadeira entidade patronal da UE que decide quem tem aumento, não de ordenado, mas de fundos europeus, quem leva louvor e quem leva reprimenda, quem é promovido ou posto de castigo, até quem deve ser expulso por mau comportamento.

Contudo, Grécia e Portugal, estes dois países agora "periféricos", foram respectivamente nem mais menos do que o berço civilizacional e cultural da Europa e o responsável pelo primeiro fenómeno de globalização - a expansão europeia para o resto do mundo, até então desconhecido. E são agora justamente estes dois países que ajudaram a construir a Europa tal como a conhecemos hoje que estão em maiores dificuldades económicas e se vêem forçados a mendigar ajuda na Europa e fora dela. Sem esquecer a própria Irlanda que, em grande parte, constitui a matriz civilizacional dos omnipotentes EUA.

É, no mínimo, uma ironia um tanto amarga da História. A tal ponto que até mesmo Timor, a nação que ajudámos a criar há cerca de uma década e a que tivemos de prestar grande auxílio para poder manter a independência, está agora em condições económicas de nos poder ajudar a nós, financeiramente, investindo na nossa colossal dívida externa. Até mesmo o Brasil declara abertamente ao mundo que quer ajudar Portugal a sair da crise em que se encontra fazendo vultuosos investimentos. Angola, por sua vez, tem aproveitado a situação para comprar participações nas grandes empresas nacionais, que é como quem diz, nas lucrativas. Agora foi a China que veio cá ver o que há, para decidir depois se compra ou não, como alguém que vai ver a mercadoria antes da abertura do leilão, para escolher as pechinchas que mais lhe interessam.

Posta de parte a fatalista possibilidade de estarmos a pagar por erros históricos antigos, numa espécie de justiça dos Fados que não perdoam nem esquecem as atrocidades cometidas por gregos e portugueses no seu passado mais ou menos glorioso, das duas três: ou o paradigma civilizacional que fundou e deu forma à Europa está definitivamente acabado e teremos que procurar rapidamente outro que o substitua para podermos sobreviver à crise que ameaça fazer submergir diversos países europeus; ou então serão os que já foram, em tempos do nosso passado colonial, considerados por muitos como os "filhos de um deus menor" que, entretanto emancipados e muito bem na vida, nos virão salvar a pele, assim ao estilo de "boa acção do dia" ou de intervenção mais ou menos filantrópica. O que, só por si, é uma ironia ainda mais requintada porque significa que, na prática, poderemos ficar nas suas mãos e depender inteiramente da sua boa vontade. Se tal vier a acontecer, sei de mais do que um a dar voltas na tumba...

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Uma viagem pela consciência

105
Há vísceras sentimentais que têm influência num homem
e essas, claro, não são as mais sensatas,
porém as piores e mais determinantes são, de longe,
as pornográficas.
Por que razão não é a vida apenas uma ordem que respira,
onde para cada momento existe uma única acção certa?
A vida individual como algo de didáctico e estúpido
onde se pedisse apenas uma repetição dos dias
que outros já tivessem praticado em perfeita segurança.

106
Abandonando a ironia e falando seriamente:
há uma certa angústia nos homens que já se viram nus
ao lado de outros humanos.
E isto porque aí se percebe com intensidade forte (e brutal)
como um homem é coisa distinta e, portanto, inimiga
de qualquer outro. Foi a roupa que inventou a compaixão
(e provavelmente a simpatia). Nus, os homens odeiam-se,
ou quando muito excitam-se; vestidos, pelo contrário,
fingem que ser da mesma espécie é mais importante
que não ser o mesmo corpo.
Vistas as coisas, Bloom quer alcançar a Índia
e a sabedoria ao mesmo tempo.
E tão longe ainda está desses dois
destinos.

Gonçalo M Tavares, Uma Viagem à Índia, Canto I, Lx: Caminho, 2010.

domingo, 14 de novembro de 2010

Ter uma "Red Right Hand" para a música

Pedradas no charco dos dias (des)iguais

René Magritte, Castelo dos Pirinéus
1ª pedrada
Dizemos ou ouvimos dizer muitas vezes expressões sobre as quais às vezes nem sequer pensamos muito, que dizemos por dizer, só para dizer alguma coisa, mesmo que no fim aquilo que dizemos não signifique de facto nada ou, pelo menos, nada de muito relevante. Dizêmo-las, mas poderíamos dizer outra coisa qualquer, pois a maior parte das vezes nem sequer pensamos sobre isso. Uma dessas expressões é “fica para a próxima”. Assim à primeira, até parece uma coisa inócua, até mesmo optimista: implica a certeza de que há sempre uma próxima oportunidade para tudo. Mas será mesmo assim? Será que a vida nos dá uma “próxima” hipótese, em tudo igual à que acabámos de perder, para que a possamos enfim aproveitar? Haverá, de facto, uma “próxima” oportunidade para os sentimentos, as vivências, as oportunidades, as ideias, os projectos ou as pessoas que, pelas mais variadas razões, não soubemos, não pudemos, não quisemos ou não conseguimos aproveitar em devido tempo? Não me parece... mas, como me vão faltando as forças, sobretudo as da vontade, para lutar contra os moinhos de vento, seja: fica para a próxima!

2ª pedrada
As “Novas Cartas Portuguesas”, escritas em conjunto pelas três Marias – a Isabel Barreno, a Teresa Horta e a Velho da Costa – obra singular da nossa literatura que, por subverter todos os cânones literários e desafiar a imbecilidade moral instalada, foi proscrita logo após a publicação em 1972 e que, com o tempo, se veio a tornar também obra maldita, vai agora ser reeditada pela D. Quixote. Ontem como hoje é um livro de que se pode ter medo, especialmente quando se é homem. Aqui não há paninhos quentes, nem pruridos em ferir orgulhos de machos cheios de pseudo-superioridades de género (masculino, claro!). Este é um livro onde se escreve “Ó meu Portugal de machos a enganar a impotência, cobridores, garanhões, tão maus amantes, tão apressados na cama, só atentos a mostrar a picha” e a ver qual é o que a tem maior, como se isso fosse o mais relevante.

É um livro belo na sua violência linguística e na forma como esventra tudo aquilo que continua a existir porque sempre foi assim ou se fez assim. É um livro que assusta também porque as mulheres que nele escrevem não têm medo das palavras e usam-nas para dizer exactamente o que precisa ser dito para sacudir as consciências de forma violenta. É um livro que mete medo porque, justamente, não deixa “para a próxima”: ele diz agora mesmo tudo o que há para dizer, fazendo da palavra uma arma arremessada com precisão às cabeças bonitas e bem-pensantes das conveniências instaladas. É, para tudo dizer, uma livro-pedrada no charco.

3ª pedrada
Nick Cave pegou nos Bad Seeds, trocou o piano pela guitarra e formou os Grinderman que Warren Ellis (um dos elementos da banda) sintetizou como “homens adultos a criar intencionalmente uma zona de risco” (Ipsílon, 12/11/2010), ou seja, com Nick Cave a vociferar contra monstros e medos antigos “Well my baby calls me the Loch Ness Monster/Two great big humps and then I'm gone”, em “Worm tamer”, ou contra o lado obscuro da vida: “What's this husband of yours ever given to you? /Oprah Winfrey on a plasma screen”, em “Kitchenette”. É, segundo o próprio Ellis, um “stoner rock”, ou seja, uma pedrada de música alucinada no charco dos dias de uma banda já com um longo percurso e provas dadas. Cave regressa assim ao lado mais sombrio da sua música, que é também o mais arrepiadoramente belo.

Para mim, Nick Cave faz na música aquilo que as nossas "três Marias" fizeram com a (re)escrita das "Novas Cartas Portuguesas": tal como elas dá uma pedrada no charco agora, ou seja, não deixa ficar para a próxima.



sábado, 13 de novembro de 2010

Previsão da meteorologia no fim de semana...

Os pombos

p
Évora, 13/11/2010
A praga dos pombos tem alastrado de tal forma em Évora que, quando percorremos certas ruas do centro histórico, mais parece que estamos numa das cenas do inquietante filme de Alfred Hitchcock "Os Pássaros"...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Frivolidades de um luminoso dia primaveril...

Jean-Honoré Fragonard, O Balouço, 1767





















... apenas para contrariar o sombrio e monotonal anoitecer...
 
"O Balouço", de Fragonard

Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afila, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça,como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Jorge de Sena, Metamorfoses, Lx, 
Moraes Editores, 1963.

Haja paciência...

... para aguentar tanta reunião, tanta aula, tanto papel preenchido, tanta hora perdida, inutilmente...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

A senha para o sonho

Se o sonho fosse a senha, o impossível seria a poesia da vida. Se a senha fosse o sonho, talvez a poesia não dissesse a vida, talvez ela fosse mesmo a própria vida.

Assim, só nos restar esperar que a poesia seja sempre a nossa senha possível para o sonho, e que este um dia nos revele então a esquiva senha para vida.

Lua adversa

Georges de La Tour, Madalena com chama e fumo, 1636-38





















Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolias
eu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles

domingo, 7 de novembro de 2010

A deriva política da língua portuguesa

Um antigo presidente do Instituto Camões, o professor Fernando Cristóvão, dizia que os falantes de português não pertencentes à comunidade linguística são mais um país da CPLP, pois há cada vez mais gente a querer aprender português, excluindo luso-descendentes e universitários. Os mais optimistas – ou talvez mais interessados no caso – afirmam que o acordo ortográfico tem um papel muito importante a desempenhar nesta expansão, pois segundo eles evita a concorrência entre as duas variantes (portuguesa e brasileira) da língua, embora aqui Portugal esteja a perder há já muito tempo, não só, mas também por falta de investimento.

Ora o ensino da língua portuguesa, ou de qualquer outra, é hoje indissociável da cultura. Neste contexto, a participação portuguesa em eventos culturais internacionais e de grande impacto mediático – festivais de cinema, exposições em grandes museus e em galerias prestigiadas torna-se muito relevante como forma de captar gente interessada na aprendizagem da língua. É com este intuito de divulgação da língua, mas sobretudo da própria cultura portuguesa, que o Instituto Camões abriu há cerca de um mês mais um centro no King's College em Londres. Apesar destes vultuosos e aparatosos investimentos financeiros não é, contudo, nas cosmopolitas capitais europeias que se joga a parada da verdadeira política de expansão da língua. Tudo isto tem muito mais que se lhe diga e, sobretudo, envolve grandes investimentos financeiros.

Veja-se o caso das Nações Unidas: com a entrada de um país lusófono no Conselho de Segurança torna-se necessário formar quadros altamente qualificados: tradutores, intérpretes, pessoal administrativo. Ainda que Portugal e os próprios países africanos de expressão portuguesa – que estão muito interessados em colaborar e ajudar a que isto aconteça – possam dar o seu forte contributo a vários níveis, alguém duvida de que seja o Brasil a retirar as grandes contrapartidas (mais uma vez, acrescentaria eu) desta oportunidade? É que, no que à situação da língua portuguesa no mundo diz respeito, a liderança do Brasil é óbvia há já muito tempo. Portugal, aos tropeções, limita-se a tentar acompanhá-lo.

Por outro lado começa a despontar em África uma outra situação curiosa. Refiro-me a Angola - actual presidente da CPLP - que tem revelado muito interesse nesta questão da língua. Graças à sua relevância económica e política no continente africano, muitos países vizinhos, como o Senegal, o Congo ou a África do Sul já introduziram o ensino do português nos seus currículos. E esta realidade emergente despoletará a necessidade de formação de professores em larga escala. A braços com uma tão grave crise económica, e com recursos humanos também eles limitados, Portugal não vai conseguir dar resposta às solicitações que lhe serão feitas por todos estes países. Restarão duas possibilidades: ou somos capazes de pensar mais além do que o horizonte anual do orçamento geral do estado para sairmos em defesa da variante portuguesa da língua, e aí contribuímos de modo significativo para a formação de professores locais; ou então deixamos que o Brasil o faça por nós.

Tendo em conta a esgotada solução de alternância político-governativa que vivemos há décadas e com a qual não há meio de conseguirmos romper – tudo indica até que estamos mais ou menos prontos para dar uma reviravolta que pintará de laranja os muros rosa da nossa lamentação - e a crise económica instalada de pedra e cal, não tenho muitas dúvidas: continuaremos à deriva nesta matéria e será mais uma vez o Brasil a ganhar esta parada, sobretudo agora que até já tem um acordo ortográfico mesmo à medida das suas pretensões. E ainda por cima mantendo a imagem de “país irmão” que dá uma mãozinha fazendo aquilo que Portugal não consegue, né?

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Amanhã é sábado. Por isso podemos respirar fundo e dizer...

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E manhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny de Vasconcellos, Pastelaria, in Nobilíssima Visão, Assírio & Alvim, 1991

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A educação pública e a criatividade, ou a falta dela(s)

Ken Robinson anda pelo mundo inteiro a dar conferências sobre escola e criatividade, ou seja, sobre como a escola deve estimular a dita para educar melhor e obter melhores resultados. Veio agora a Portugal. Os seus argumentos assentam no trabalho que realizou há uma década atrás em Inglaterra – reuniu especialistas, escolas, professores e associações de pais para discutir a importância da criatividade no quotidiano das escolas –, o qual culminou com a publicação de um relatório final, o All Our Futures, mais conhecido como Robinson Report.

Sir Ken Robinson é sobretudo um comunicador brilhante, com um discurso que cativa até a plateia mais renitente. Os seus argumentos são também irrefutáveis, claro. Quem é que, actualmente, discorda da ideia de que a arte e a criatividade têm um papel importante na educação das crianças e jovens? O problema é passar da teoria à prática quando o sistema educativo é cada vez mais encarado, por quem decide as medidas políticas e económicas que se lhe aplicam, do mero ponto de vista da produtividade e da eficácia, que é como quem diz, do sucesso estatístico a todo o custo.

Mas há um argumento que Robinson não se cansa de repetir e que a mim, como professora, me levanta muitas dúvidas: diz ele que a escola mata a diversidade. Diz até que aceitamos hoje a diversidade em todo o lado - restaurantes, arquitectura ou música – mas que, na escola, continuamos a proceder a uma espécie de “normalização” castradora dessa mesma diversidade natural dos indivíduos. Pode até ser, mas o que eu também não duvido – até pela experiência que tenho na escola onde trabalho – é que a diversidade, se não mata a escola, mata pelo menos algumas coisas na escola. Desde logo pela diversidade de medidas tantas vezes avulsas, contraditórias (para não dizer absurdas) e quase inúteis que orientam o quotidiano da escola. Mas também pela diversidade de problemas insolúveis que nela desaguam, que afectam o seu funcionamento e que a escola, só por si, não consegue resolver: tremendos problemas familiares e pessoais, famílias desconjuntadas e disfuncionais, carências económicas, desajustamentos e dificuldades sócio-culturais de toda a ordem, complexos e graves problemas de saúde física e até mental, etc.

Tudo isto agravado e potenciado por um sistema de ensino todo ele orientado para metas de sucesso estatístico, como é o caso do nosso, em que todos anos os rankings - para mim a forma mais eficaz e barata de humilhar as escolas e os que nelas trabalham, incluindo os próprios alunos – inviabilizam de todo as tais criatividade e atenção à diversidade que implicam, claro está, atenção pessoal a cada um dos alunos, enquanto indivíduos. Isto foi possível na escola de outros tempos quando os alunos eram apenas os poucos que a podiam frequentar e que, por isso, se entregavam à aprendizagem de peito aberto.

Hoje isso ainda acontece nos bons colégios privados e nas mais prestigiadas universidades que só alguns podem pagar e a que só uma elite tem acesso. Na escola pública que pretende dar uma formação mínima ou básica a um máximo de alunos, não estou a ver como é que será possível fazer algo de semelhante, nem mesmo por decreto. No ensino público o que ainda vai valendo é a boa vontade e o profissionalismo de muitos professores que dão todos os dias o seu melhor, apesar de tudo. No mundo real do ensino público a criatividade é sobretudo uma possibilidade, ou talvez um sonho, que alguns conseguirão agarrar ou não, à semelhança de muitas outras coisas na vida: sucesso pessoal e profissional, dinheiro, reconhecimento, poder, etc. Na vida real da escola pública andamos todos a tentar que os alunos percebam que esses sonhos existem e que eles, com esforço, perseverança e motivação, os poderão vir a alcançar um dia, ou não. Se calhar não chega mas, nos dias conturbados que vivemos, se conseguirmos ao menos isso, já não será tão pouco assim.

No entanto, como exercício de reflexão, não deixa de ser interessante escutar Sir Ken Robinson. Talvez até escutá-lo sobretudo como exercício de imaginação, se ainda houver tal coisa nas nossas cabeças:

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Fome Indecisa

Penélope, David Ligure













Como hei-de saber o que desejo,
Se tudo o que não tenho me apetece?
A minha vida é mesmo essa quermesse
Negativa.
Vivo
A sonhar ser conviva
Doutro banquete

Miguel Torga, Diário V, 1951