O que aconteceu com os livros em algumas décadas é não apenas surpreendente, mas também exemplar para compreender os tempos de mudança acelerada que vivemos, independentemente de quaisquer juízos de valor sobre a qualidade e as consequências dessa mesma mudança.
Até à década de 60 do século passado, até mesmo depois, o livro permitia-se o luxo de se tornar difícil, digamos assim, obrigando o leitor a abrir-lhe as páginas uma a uma se o queria ler. Era sem dúvida o leitor que buscava o livro e este não era, de facto, para todos. Lembro-me de Saramago contar que, quando ainda era pouco mais do que um simples operário, passava os serões numa biblioteca de Lisboa a ler, tendo sido em boa parte assim que adquiriu a bagagem cultural que lhe serviu de suporte à escrita algum tempo depois.
Veio depois um tempo em que ler um livro se tornou, para muitos, uma coisa chata quando comparada com jogos de video, internet, redes sociais e, sobretudo, telemóvel. Inaugurava-se assim a época de ouro da literatura dita light, que tem tido diversas marés temáticas - estamos agora na fase dos vampiros -, e que sobrevive da fama de ser fácil de ler e pouco chata, pois não será preciso utilizar muitos neurónios em simultâneo para lhe decifrar o enredo. Talvez seja por isso que, mesmo no formato tradicional, em papel, têm tanta saída.
Com tudo isto, o livro, enquanto verdadeiro objecto cultural e literário, viu-se obrigado a ir ele ao encontro do leitor. E esta necessidade, não dos livros em si, mas das editoras que os publicam e, se calhar também dos próprios autores dos livros, tem aguçado o engenho e criado verdadeiras maravilhas tecnológicas que quase metem os livros dentro da cabeça do leitor, evitando que ele se esforce muito. Ele são os audiolivros em cd ou em mp3, ele são os e-books disponíveis na internet, ele são os formatos pdf que também estão na net, em bibliotecas virtuais ou em sítios como o Scribd e tantos outros, e ele é, sobretudo, o Kindle Wireless Reading Device da Amazon (Ver aqui) que, embora recente, já vai na segunda geração, para quem tenha dinheiro para o adquirir e manter, claro está.
Ironicamente, o consumismo frenético em que vivemos mergulhados impele à compra destes gadgets electrónicos para se estar in, só que eles custam o dinheiro que muitos já não têm disponível. Voltámos assim, de certo modo e por vias bem distintas, atrás: tal como em meados do século anterior nem todos tinham dinheiro para comprar livros, agora, no início de século XXI e de um novo milénio, também nem todos têm dinheiro para adquirir Kindles. Antes, valia aos livros a vontade que os leitores tinham de os ler. Agora, talvez lhes valha a vontade de muitos em possuir o último gadget da moda. Ou talvez o que antes era apenas sede de saber e cultura seja agora, para muitos, mera ânsia de status. E claro, os leitores compulsivos não entram aqui porque esses, embora em número reduzido, são de todos os tempos e mantêm-se constantes nos seus hábitos.
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