terça-feira, 17 de agosto de 2010

Se fosse possível escreviver

Quando comparo escrever e viver, concluo que escrever me tem sido quase sempre mais fácil. Apenas eu e o rosto branco do papel, frente a frente, sem subterfúgios, sem ilusões nem desilusões. Alguma coisa de limpo e, sobretudo, de verdadeiro. Também por isso, essencial. Já não se passa o mesmo com a conjugação do verbo viver.

Se fosse possível juntar ambos e escreviver, acho que tudo seria mais fácil e menos doloroso. É que, como dizia José Gomes Ferreira, Viver sempre também cansa:

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
Folhas, frutos e pássaros
Como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe, automóveis de corrida.

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Não o vou ressuscitar
Por uma bagatela.”

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...

José Gomes Ferreira, Militante, vol. I, 1ª ed. Moraes Ed., 1977