Numa “garage sale”, ou melhor, "arquivo morto sale", que a biblioteca da minha escola realizou este ano como forma de esvaziar os arquivos e abrir espaço para os bulldozers da ParqueEscolar, comprei por cinquenta cêntimos um livro publicado em edição de autor pela Livraria Sá da Costa em 1955, intitulado Introdução à Vida Docente de Francisco Dias Agudo, que era ao tempo reitor do liceu Gil Vicente. Trata-se de um curioso ensaio sobre a profissão de professor que se assume, segundo o próprio autor, como um “Projecto de Estatuto do Professor”. E, claro, a comparação com o actual Estatuto (ECD) é aqui quase inevitável.
Ao longo das suas mais de trezentas páginas o autor discorre e medita, com notório entusiamo pessoal e conhecimento de causa, sobre “as misérias e grandezas do nosso ofício” (p.9), procurando separar “toda a ganga que o confunde [ao profissional do ensino] e deixa[r] livre o caminho que conduz tanto à solução crítica como à norma prática de procedimento pessoal.” (p.9).
Segundo Dias Agudo, a função docente “tem uma particular dignidade”, que logo se transforma em responsabilidade “debaixo da forma de direitura de procedimentos, de recta norma que, para ser definitiva e acabada, e desse modo conduzir a um acto consciente de governo próprio, há-de emergir de uma situação, conquanto transitória e acidental, - viva e real”(pp.9-10). Tem ainda a “singularidade de se multiplicar por divisão, como sucede sempre que se reparte um bem moral.” (p. 10) Sob este ponto de vista – e sempre na perspectiva do autor – o professor é, ou deve ser, sobretudo um “mestre” que “Dando ou concedendo, (…) esquece a origem donde mana a fonte e deve apenas à sede, que ele mata.” (p.11).
Dias Agudo conduz depois o discurso e o raciocínio para a ideia da “dignidade” do professor, começando por esclarecer conceitos que, sendo afins, são também intrinsecamente distintos: os de professor, mestre e preceptor.
Assim, professor é, “no sentido da letra, de actividade própria e devidamente profissional”, aquele que “vive da escola organizada ou faz, ele mesmo, a escola”, mas é também aquele que “professa”, ou seja, que se integra “numa ordem e colhe dela um proveito, um benefício que por sua vez reparte exercendo a sua profissão docente”. Para Dias Agudo “É este carácter frequentativo, de repetição, que está na raiz da sua função.” (p.11). Contudo lembra ainda que “Assim como toda a criação no reino da natureza é uma repetição na diversificação, a que corresponde espécie e indivíduo, assim o é na ordem espiritual a acção docente do professor; em sua raiz está a repetição do que ele aprendeu e revive em sua actualidade a qual, para ser sua, individual e pessoalmente sua, contende necessariamente com criação diversificada.” (pp.12-13)
Logo depois escreve que “Suprimida a criação espontânea e pessoal, o professor não é mais um professor. Por falta de opinião própria, ou por insuficiência de adesão à sua própria actualidade, por míngua de sinceridade ou pela máscara que o cobre, pelo artifício que o condiciona ou pela comédia que representa – é um farsante; se o negócio ou tráfico está na raiz dos seus propósitos é um traficante; se esse tráfico foi previamente concertados, combinado, tratado - mesmo um tratante. (p.13).
Refere-se ainda o autor, neste capítulo inicial da obra, a um conceito que, ainda hoje, aparece de vez em quando nos debates e discussões sobre o ensino, embora nem sempre pelas melhores razões: o de sacerdócio. E esclarece Dias Agudo que esse é um “falso sentido” (p.16) da palavra professor, uma vez que essa designação quase sempre pretende “encobrir que se aquiete o magistério e o Tesouro, e continue o erário sobranceiro e indiferente às necessidades da pessoa ensinante”, mais do que conter em si mesma um “implícito elogio ou excelência de justiça”(p.16).
De certa forma são bem sábias e bem actuais estas palavras, apesar da sua já provecta idade. Na verdade, o que o Menistério da Educação* tem vindo a fazer nestes últimos anos é justamente considerar os professores como “tratantes”, exigir que eles se tornem “farsantes” e actuar ele próprio como um “traficante”. À luz destes três conceitos – tal como Dias Agudo aqui os apresenta – se pode facilmente entender o Modelo de Avaliação do Desempenho Docente (ADD), o Estatuto da Carreira Docente (ECD), o Estatuto do aluno, bem como o novo modelo de gestão das escolas. Apenas um breve exemplo, retirado desse verdadeiro “tratado de desconsideração pela docência” - que dá pela designação de DL 15/07 ou ECD – o qual, logo no texto introdutório faz esta afirmação esclarecedora sobre o pensamento do Menistério* da Educação sobre os professores que para ele trabalham: “... permitiu-se até que as funções de coordenação e supervisão fossem desempenhadas por docentes mais jovens e com menos condições para as exercer. Daqui resultou um sistema que não criou nenhum incentivo, nenhuma motivação para que os docentes aperfeiçoassem as suas práticas pedagógicas ou se empenhassem na vida e organização das escolas.” Ou seja, os professores mais novos – todos com licenciatura na sua formação inicial, muitos com mestrados e pós-graduações especializadas - trabalhavam no duro, com a gestão das escolas incluída neste pacote, enquanto os colegas mais velhos (não todos, claro, mas muitos deles) beneficiavam das reduções e privilégios que a carreira, e o próprio Menistério*, sempre lhes concedeu. Agora, por força de decreto e porque ao Menistério interessa proceder de outro modo, são considerados, assim de repente, como praticamente “incapazes”. Esta afirmação injusta, tendenciosa e mal-intencionada arrumou definitivamente a questão da profissão para mim, transformando-a, com muita pena minha, em mero trabalho que me garante o sustento de todos os dias. Apenas posso lamentar o facto de ter escolhido, por vocação, um ganha-pão bem duro e desgastante.
Já sobre a questão da extinção dos chumbos de que a Senhora Menistra* falou recentemente, e que tanta polémica tem levantado por aí, só posso dizer que não sei o que será melhor: se ouvir um apelo da direcção da escola para que os professores usem de “bom senso” e não reprovem os alunos porque as estatísticas são um caso sério e a escola tem pergaminhos a defender, se ouvir uma colega da escola, mas actualmente a desempenhar funções na administração educativa regional, dizer numa reunião para a qual foram convocados todos os docente do terceiro ciclo, que um professor ganha 14 ordenados por ano – apontou até o valor financeiro que um professor a meio da carreira ganha e quanto isso dá ao final do ano – para nos questionar depois como é que nós, professores, que representamos um tal encargo anual para o estado, vamos dar contas do nosso trabalho em termos de (in)sucesso quando sobre isso formos questionados pelo tal Menistério-patrão* que nos paga o dito ordenado. Pelo menos assim acabava-se a fantochada que vivemos na escola à conta das taxas de (in)sucesso a assumíamos de uma vez que ser professor é, de facto e cada vez mais, um sacerdócio (e não uma profissão), exactamente no sentido crítico e pejorativo que Dias Agudo há já tantos anos apontou. Talvez este aquietamento entre o orçamento de estado e o magistério acabasse em definitivo com este clima de “guerra de baixa intensidade” que se vive no ensino há já vários anos, sem que se lhe consiga adivinhar o fim. Era pelo menos mais honesto assumir oficialmente que não se podem chumbar os meninos e, só por isso, já valeria provavelmente a pena.
Mas retomando o texto de Dias Agudo - que é aqui o que mais importa - naquilo que pode hoje ser até mais interessante para os seus eventuais leitores: quais são então as características e/ou capacidades que um professor deve ter? (Aquilo que hoje se designa como “conteúdo funcional da carreira). Dentro do espírito do tempo, o autor chama-lhes “virtudes magistrais” e aponta um número bastante superior aos das virtudes teologais: ao todo sete (como os pecados mortais, curiosamente), a saber: paciência, humildade, prudência, liberalidade, justiça, coerência e esperança.
Este seria portanto – caso os seus fundamentos e princípios tivessem vingado - um Estatuto profissional de carácter sobretudo ético e deontológico – justamente a dimensão mais ausente do actual ECD – e muito associado, também dentro do espirito característico da época, à noção de dever. Mas apesar dos anacronismos, não deixa de ser uma proposta interessante, sobretudo pela sólida e erudita argumentação do autor, acompanhada de uma consistência vocabular e sintáctica, hoje já caída em desuso e que por vezes, faz lembrar a oratória vieirina. Eis algumas das belas metáforas a que recorre Dias Agudo:
Paciência - “serena e contínua decantação”; “lenta e demorada edificação da pessoa do discípulo” (p.83);
Humildade - “Assina o pintor o seu quadro, o compositor a snfonia, o estatuário a estátua e o poeta os versos que compõe. (…) Mas o professor não assina a obra que faz. Ele não pode documentar-se pois esse presumível e fugidio documento que é o discípulo não tem suficiente força probatória se o mestre o deixa aos 10 anos; e também a não tem daí por diante porque se não pode saber a quem pertence o merecimento de um homem feito, tantas são as influências que este recebe para bem opu para mal.” (pp. 89-90);
Prudência - “A prudência é, com efeito, uma virtude verdadeiramente ligada à terra, enquanto a humildade fecunda o conceito de vida eterna. Prudência é norma de relação, de comunicação, de convívio ou conhecimento das coisas; a humildade, porém, vive da intimidade de si mesma e radica-se na profundidade da alma. O santo é humilde; o sábio é prudente.” (p. 98) “... o prudente, com a sua ante-visão, com a sua clarividência, a sua sagacidade e o seu saber não se obriga, pelo contrário, - obriga, e é desse modo dominante e vencedor das dificuldades possíveis.” (p.99);
Liberalidade - “Ora, assim como é generoso o fruto para a semente, assim também a prudência é liberal na magistratura do ensino.” “A prudência vive na pessoa do mestre com esse valor de comunicação incontida: é generosa, é liberal e, porque faz o trânsito do saber individual ao saber social, é transitiva.” (p.105) “A liberalidade e o magistério vivem de um presente, não discutem um futuro pessoal e próprio, e é no desenvolvimento desse presente que floresce a sua inclinação generosa.” (p.108)
Justiça - “A justiça é na pessoa do mestre, como duplo de juiz e de réu que ele é, summun jus, ou não é nada o que aqui quer dizer que ao professor não basta ter razão, mas que só lhe chega ter a razão toda; nenhuma, a parte contrária.”. “Não pode nesta causa bem julgar o juiz que se não assente no banco do réu. Essa é a cátedra única e verdadeira donde pode proferir-se sentença sem apelo e sem agravo.”(p.116)
Coerência - “Praticou o santo toda a vida santidade? Santo Agostinho responde. Fez o Poeta só poesia deleitável? Sabe-se que uma exegese adequada põe a descoberto versos artisticamente pobres.” (p.137) “Há uma reversibilidade possível entre inteligência e in-inteligência executória; entre pecado e santidade. Não a há entre justiça e incoerência, pois que esta conduz à descontinuidade e a justiça em sobressaltos é justiça envilecida. Por isso, o professor que julga, assumindo o papel de juiz obriga-se a ser coerente consigo mesmo, igual a si próprio, executivo de critério unívoco, pois que a justiça equívoca é justiça degradada, imoral.” (p.137-138)
Esperança - “Tal como a seara, a vida é cíclica, contínua, - contínua em esperança. Continua-se por sobreposições sucessivas, - o que vem, sobre o que foi – pois um só homem sem futuro e sem passado poderia viver o só momento presente destacado de toda a eternidade. A vida feita só dessas singularidades momentâneas perderia o carácter dinâmico que flui e enlaça e, por isso mesmo, ama. (…) Porque o passado não pode afeiçoar-se ao nosso desejo, é imodificável (…), está como que precipitado no caos e não pode ser recriado; diferente é o futuro, susceptível (…) da nossa íntima esperança.” (p.145) “O mestre crê no seu discípulo pela necessidade primitiva de crer em si mesmo; - por imperativo moral. Porém, essa esperança, como tudo quanto nele vive profissionalmente, é espontaneamente transitiva para a pessoa do discípulo: para que este espere de si mesmo e a si mesmo se promova confiante, construtivo, exaltado.” (p. 151)
E é mesmo assim, de facto: só nos resta a esperança, ainda que a reconheçamos como cada vez mais distante e improvável.
* Grafia intencional.
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