terça-feira, 16 de novembro de 2010

Uma crise singular

A Europa vive uma crise singular: económica, sem dúvida, mas sobretudo civilizacional e cultural. De repente, nos media, Portugal e a Grécia aparecem sempre designados como países "periféricos", ou seja, à margem de, podendo até vir a tornar-se descartáveis. Mas "periféricos" relativamente a quê? Ao bloco de países centro-norte da Europa, verdadeira entidade patronal da UE que decide quem tem aumento, não de ordenado, mas de fundos europeus, quem leva louvor e quem leva reprimenda, quem é promovido ou posto de castigo, até quem deve ser expulso por mau comportamento.

Contudo, Grécia e Portugal, estes dois países agora "periféricos", foram respectivamente nem mais menos do que o berço civilizacional e cultural da Europa e o responsável pelo primeiro fenómeno de globalização - a expansão europeia para o resto do mundo, até então desconhecido. E são agora justamente estes dois países que ajudaram a construir a Europa tal como a conhecemos hoje que estão em maiores dificuldades económicas e se vêem forçados a mendigar ajuda na Europa e fora dela. Sem esquecer a própria Irlanda que, em grande parte, constitui a matriz civilizacional dos omnipotentes EUA.

É, no mínimo, uma ironia um tanto amarga da História. A tal ponto que até mesmo Timor, a nação que ajudámos a criar há cerca de uma década e a que tivemos de prestar grande auxílio para poder manter a independência, está agora em condições económicas de nos poder ajudar a nós, financeiramente, investindo na nossa colossal dívida externa. Até mesmo o Brasil declara abertamente ao mundo que quer ajudar Portugal a sair da crise em que se encontra fazendo vultuosos investimentos. Angola, por sua vez, tem aproveitado a situação para comprar participações nas grandes empresas nacionais, que é como quem diz, nas lucrativas. Agora foi a China que veio cá ver o que há, para decidir depois se compra ou não, como alguém que vai ver a mercadoria antes da abertura do leilão, para escolher as pechinchas que mais lhe interessam.

Posta de parte a fatalista possibilidade de estarmos a pagar por erros históricos antigos, numa espécie de justiça dos Fados que não perdoam nem esquecem as atrocidades cometidas por gregos e portugueses no seu passado mais ou menos glorioso, das duas três: ou o paradigma civilizacional que fundou e deu forma à Europa está definitivamente acabado e teremos que procurar rapidamente outro que o substitua para podermos sobreviver à crise que ameaça fazer submergir diversos países europeus; ou então serão os que já foram, em tempos do nosso passado colonial, considerados por muitos como os "filhos de um deus menor" que, entretanto emancipados e muito bem na vida, nos virão salvar a pele, assim ao estilo de "boa acção do dia" ou de intervenção mais ou menos filantrópica. O que, só por si, é uma ironia ainda mais requintada porque significa que, na prática, poderemos ficar nas suas mãos e depender inteiramente da sua boa vontade. Se tal vier a acontecer, sei de mais do que um a dar voltas na tumba...

2 comentários:

platero disse...

análise excelente

sem ser linguista, parece-me que os termo técnicos ainda agora utilizados,para além dos conceitos, são eles próprios de origem grega:
democracia; governo/governar; bolsa;
esmola; pedagogia...

talvez a Grécia e Portugal estejam destinados a encerrar um ciclo aberto e continuado há séculos, para inventarem um novo "paradigma"
- quem sabe uma adaptação aproximada do já anunciado Quinto Império
Quinto ou Sexto, tudo o que vier será melhor do que o que está

beijo

FM disse...

Vamos ver o que dá, mas se calhar o melhor era esquecermos a parte do "império". Já se viu que não dá grande resultado, nem é solução duradoura.
bj