quinta-feira, 28 de abril de 2011

Poema dum(/a) funcionário(/a) cansado(/a)

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estrita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa noite só comprida
num quarto só.

António Ramos Rosa, Viagem Através de uma Nebulosa, Ed. Ática, 1960

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