Ao fazer por aqui uma certa ‘desinfecção‘ aos papéis acumulados ao longo de anos, de modo a arranjar algum espaço para acumular mais uns quantos, deparei com o cartaz de uma exposição realizada nos tempos de universidade:
Constituía o trabalho final de uma cadeira do segundo ano, e escolhemos como tema a reprodução e difusão do livro na Idade Média. Deu-nos, às quatro que o realizámos, um trabalho imenso mas, dos conteúdos propriamente ditos, só me restam agora vagas lembranças, pois eram de facto anódinos. À minha guarda ficaram as fotografias dos manuscritos que ainda guardo em casa por nenhuma razão em especial, a não ser pela grande dificuldade que tenho em separar-me de todo e qualquer papel que me caia nas mãos. Contudo, não me esqueci da história d’a escavo-enceradora e a Fátima também não. Muito de vez em quando ainda a revivemos:
Chegámos logo ao início da manhã ao Colégio do Espírito Santo. Tinham-nos atribuído a sala 208. Era uma sala de aula e havia necessidade de retirar todas as mesas e cadeiras antes de poderem ser montados os painéis da exposição. A professora tinha-nos dito que teríamos a colaboração dos funcionários da universidade mas, como é habitual nestas coisas, ninguém apareceu. Por isso, carregámos e empilhámos tudo no corredor. No fim, parámos para descansar e observar o espaço que, vazio, parecia bem diferente. A sala estava encerada e, porque o quadro era de giz, o chão estava bastante manchado e marcado. Antes de mais nada, era imperativo melhorar a sua aparência.
Enviámos uma emissária a ver se conseguia descobrir vida em Marte. Durante quase uma hora andou como que perdida no espaço sideral dos extensos corredores, até conseguir descobrir uma extraterrestre que, por mero acaso, era funcionária da universidade e pedir-lhe com muito jeito, quase em tom de súplica, por favor, por favor, que fosse ver como a sala precisava mesmo, mesmo, de ser encerada. A senhora lá veio de muito má vontade e pior catadura e, em tom de poucos amigos, declarou que ia buscar uma enceradora para nós fazermos o trabalho que lhe competia a ela. Logo que saiu, reajustámos os planos: trabalharíamos em pares a fim de realizarmos as tarefas seguintes com mais celeridade, uma vez que encerar uma sala com aquela dimensão ainda levaria algum tempo. Ofereci-me para manobrar a dita cuja, já que em minha casa havia uma e eu sabia como usá-la. Entretanto, a funcionária lá trouxe a enceradora. A Fátima, que tinha ficado comigo, dirigiu-se à mesa para cortar cartolinas e eu liguei o longo cabo do aparelho à corrente para iniciar também a tarefa a que me tinha proposto. Era uma máquina industrial e, por isso, bem maior e mais pesada do que as suas congéneres domésticas. Aliás, era mesmo imponente, mas ligava-se exactamente como elas: era preciso baixar uma espécie de alavanca que funcionava também como um leme e permitia nevegar com as escovas pelo chão.
No preciso momento em que, depois de posta a funcionar, lhe dei um leve empurrão para que seguisse em linha recta, senti um tremendo puxão no braço e comecei a ser arrastada aos esses pela sala, a uma velocidade espantosa. Era como se, por baixo das escovas, tivesse acontecido um estranho fenómeno, tipo Dr. Jekill & Mr. Hyde, e a máquina se tivesse transformado em retro-escavadora, ou melhor, em escavo-enceradora. Apanhada de surpresa não conseguia reagir e muito menos era capaz de controlar os movimentos. Aturdida pelo barulho ensudecedor do motor, limitava-me a acompanhar aos solavancos e tropeções o monstro desgovernado. Como não tinha pronunciado uma palavra, a minha colega, curvada sobre a mesa no extremo oposto da sala e concentrada no trabalho, ainda não se tinha apercebido de nada. Eu só sabia que, se puxasse a alavanca para cima, a faria parar, mas do pensamento à acção ia uma longa distância. Foi então que a escavo-enceradora virou repentinamente a sua atenção para o sítio onde a minha colega continuava a trabalhar e arremeteu naquela direcção como se tivesse vontade própria. Mal tive tempo de dar um grito de alerta e já estava a persegui-la pela sala fora. Só via a sua cara de pânico quando ela olhava para trás a ver se já estava a pontos de ser trucidada pela infernal máquina. Não sei quanto tempo durou a perseguição, mas sei que demos assim umas quantas voltas pela sala. A sorte é que a porta estava fechada, caso contrário, acho que a escavo-enceradora teria enfiado pelo corredor afora - e nós com ela – até que o cabo não pudesse esticar mais. Quando já pensava que só uma cavaleiro medieval nos poderia salvar das garras daquele dragão ululante, a Fátima teve a brilhante ideia de correr em direcção à tomada para desligar a corrente.
Quase de forma miraculosa, o rugido esmoreceu até se extinguir e o monstro ficou, por fim, inerte: era novamente uma simples enceradora. Ali ficámos as duas, no súbito silêncio, estarrecidas de surpresa, ofegantes de cansaço e banhadas em suores de todas as temperaturas a olhar uma para a outra e sem pronunciar palavra durante algum tempo. Não muito, porque ainda não tínhamos recuperado o fôlego, e já ríamos em sonoras gargalhadas. Parecia-nos impossível parar de rir, da mesma forma que nos tinha parecido impossível parar a enceradora. Por fim lá recuperámos o controlo, porém, bastava cruzarmos os olhares para tudo voltar ao princípio.
Quando as duas colegas chegaram e tentámos contar o que tinha acontecido, a história saíu tão atabalhoada pelo riso que elas ficaram a olhar para nós com cara de quem, no mínimo, tinha dúvidas sobre a veracidade de tão bizarro episódio. Só o brilhante trilho que serpenteava no chão comprovava que, afinal, alguma coisa se tinha passado. Exactamente o quê, é que as recém-chegadas ainda não tinham percebido muito bem. Nisto, a Dina, com o seu habitual sentido prático, arregaçou as mangas e, enquanto se dirigia para a enceradora, declarou que quem ia tratar daquele assunto era ela. Temi pela sua vida e achei que, se tivesse amor à minha, o melhor a fazer era fugir dali a sete pés. Não sei se foi o tom firme e decidido, se foi a expressão determinada do rosto, sei é que ela ligou a maldita coisa e esta obedeceu prontamente à voz da dona, como se fosse um cachorrinho. Ficámos a olhar boquiabertas enquanto a Dina circulava eficientemente pela sala aos comandos da enceradora como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.
Ainda hoje não sei explicar o que aconteceu naquele dia, sei é que aconteceu, e sei que nunca mais voltei a olhar para enceradoras da mesma forma. Sei também que nunca mais na vida voltei a dar gargalhadas tão genuínas como aquelas. Se calhar, porque nunca mais me aconteceu nada de semelhante.