Lá fora, um nevoeiro espesso, quase leitoso, envolve as coisas e os seres, como se os quisesse dissolver. A casa está mergulhada num silêncio frio. Amanhã está a escassas horas de distância. O dia chega ao fim e eu folheio o livro. No poema, há uma expressão que se destaca, quase um refrão:
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que eu vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas, p. 80
(sublinhado meu)
Amanhã é novamente dia de fingir que está tudo bem.
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