quarta-feira, 25 de maio de 2011

Balizas ontológicas

Zé Fernandes, personagem e narrador de A Cidade e as Serras de Eça de Queirós, afirma peremptório a um Jacinto recém-deslumbrado com a natureza opulenta de Tormes que a trilogia "Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro" é um dos três grandes actos, sem os quais, "...segundo diz não sei que filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem..." E acrescenta depois: "Tens de te apressar, para ser um homem." (p. 209)

Pois eu, nas minhas circunstâncias e por estes parâmetros, nem que corresse desalmadamente conseguiria alcançaria tal meta. Mas nem sequer estou muito preocupada pois os fundamentos de uma "filosofia" que se limita a lançar as coisas no mundo e não quer saber do resto da sua existência são, no mínimo, duvidosos: o mero acto biológico de "fazer um filho" é mais meritório do que educar e formar uma criança até que ela se transforme num adulto equilibrado? Escrever livros que mais não são do que "papéis pintados com tinta", como no poema de Pessoa, só por escrever, adiantará alguma coisa? Fazer o gesto protocolar de plantar uma árvore que definhará depois por falta de água e de cuidados torna o mundo, e as pessoas dentro dele, melhores em quê? Viver a pensar/preparar o futuro é melhor do que apenas viver? Esta ânsia de posteridade que, de certa forma, se confunde com a de notoriedade, sempre me deixou indiferente. E se nada disto acontecer? Somos ninguém,  nada? Nem sequer "humanos"?

Vem tudo isto a (des)propósito de uma das crónicas diárias do Miguel Esteves Cardoso para o Público (10/5/2011) que era assim:

"Borges dizia que o esquecimento era tão importante como a memória mas levei até ontem a perceber que ele dava importância de mais à memória – e ao esquecimento.

Ocupar o presente – que é a única coisa que realmente temos – com o passado (a memória e o esquecimento) ou com o futuro (o medo, ansiedade, ambição, esperança, ignorância e esquecimento) é mesmo perder tempo. Lembrar ou antecipar é roubar presentes ao presente. Em vez de oferecer presentes ao presente – a começar por um simples obrigado por estar aqui, nem morto nem com vontade de morrer -, criamos-lhe dívidas, por não ser tão bom como certos passados ou incertos futuros que se imaginam.

A saudade funciona para trás e para a frente. O amanhismo é uma ilusão horrenda – pensar que tudo vai acabar bem, em vez de dar graças por aquilo que se tem. Acabamos todos mortos e o risco é perdermos o entretanto, pensando mais no nascimento, na vida e na morte do que no maravilhoso expediente de estarmos vivos e estúpidos de não sabermos nem querermos saber o que se segue.

Mas o ontemismo – “dantes é que era bom” – que afecta mais os portugueses, romenos e outros (poucos, graças a Deus, para bem deles), nostómanos, fetichistas da nostalgia, também suga muito contentamento ao prazer evidente do presente. De que doenças não padecemos? Quais são as catástrofes que, de momento, não nos ocorrem? Ainda estamos vivos? Ainda sabe bem queixarmo-nos?

É bom sinal. A terra prometida é o presente; é agora."
 
Ora é justamente aqui que eu me situo. O passado, seja ele as recordações de infância ou as histórias de adolescência é isso mesmo: pretérito perfeito ou imperfeito. E ainda bem. O futuro não sei como será. Por isso não perco muito tempo a pensar se vale a pena fazer isto ou aquilo hoje porque o futuro será desta ou daquela maneira. Faço ou não faço, hoje, não amanhã, muito menos por causa de amanhã. E também não caio na (des)ilusão de "preparar" o futuro simbolizada na tal máxima do filósofo que ninguém sabe quem foi: fazer um filho, escrever um livro e plantar uma árvore. Sou muitas coisas - realista, pessimista, idealista... - mas não sou nem ontemista nem amanhista.
 
Ontologicamente, "A [minha] terra prometida é o presente; é agora", como escreveu Miguel Esteves Cardoso, e eu subscrevo cada dia mais.

Sem comentários: