quarta-feira, 4 de maio de 2011

Do oito para o oitenta: paradoxos de um país que (des)espera

Nos media as marés vão e vêm. Antes da famigerada crise, quando havia crédito fácil e barato como nunca antes se tinha visto por cá, a ordem era consumir, comprar, gastar. Despudoradamente, bancos e agências financeiras sugeriam em tom apelativo que pedíssemos dinheiro para fazer férias de sonho, para trocar de carro, para fazer obras em casa, para renovar a mobília, etc. etc. Aliás, a publicidade martelava-nos o cérebro ao longo de todo o dia, quer em relação aos cartões, quer em relação ao crédito. A concorrência entre os bancos para conseguir emprestar dinheiro tornou-se mesmo feroz e, se um baixava o spread, o outro oferecia logo mais não sei o quê. Em suma, emprestar dinheiro era o imperativo nacional. Por isso, qualquer pessoa tinha a carteira forrada com vários cartões de débito e, sobretudo, de crédito, de diferentes bancos, independentemente de lá ter conta ou não. Eu própria recebi por correio, sem o ter solicitado, diversos cartões de crédito de bancos onde nunca tive conta com a indicação de que tinha já à disposição o dinheiro x e y. Lendo depois a volumosa e atraente publicidade que os acompanhava até parecia que, por uma vez, havia mesmo almoços grátis. Foi nesta ilusão que muita gente se deixou enredar e, por causa dela, está hoje a pedir em tribunal a declaração de insolvência para ver as dívidas perdoadas.

Com a dita crise económica e financeira internacional houve então uma progressiva inversão das coisas e, de repente, já só se fala na sopa dos pobres, no número crescente de famílias que pedem as mais diversas ajudas, na necessidade de poupar, ou na forma de cozinhar uma refeição familiar por, imagine-se, 1 €.  Até a tolerância de ponto da 5ª feira santa foi altamente criticada, como se disso dependesse a salvação do país. Ou como se, mesmo no tempo das vacas ditas gordas, não houvesse gente em dificuldade. E depois lá continuaram os media com a questão das mini-férias: o país em crise e tanta gente no Algarve. E logo a interrogação: como é isto possível?

A chegada do FMI marcou claramente o início de uma nova fase na informação, sobretudo televisiva: o país é agora não apenas pobre, como anda de mão estendida à caridade alheia e as imagens que mostram do país lembram, às vezes, as do tempo da ditadura.

Antes, em tempo de dinheiro fácil, era obrigatório viver bem acima das nossas reais possibilidades. Agora que os euros escasseiam, parece que temos de ser pobrezinhos e passar fome à força toda, ou seja, do oito passou-se para o oitenta. E é essa também a imagem que passa lá para fora. É o caso desta fotografia em que uma mulher toma banho de alguidar no meio do campo, sob o olhar curioso de uma mula, que foi tirada há umas 2 ou 3 semanas, mas que mais parece ter sido feita no início do século passado.

Local: Moita; Autor: Rafael Marchante; Agência Reuters
Nós, que estamos cá, sabemos que esta é só uma imagem e que Portugal é bem mais do que apenas isto. Quem está lá fora e não conhece bem a realidade é que pode tirar conclusões erradas a partir dela. De certa forma este tipo de imagem molda a consciência de quem a vê e ajuda a reforçar a ideia de que somos, de facto, um país pobre e atrasado. Por isso estamos a pedir ajudar ao FMI.

No fundo, como muito bem disse Miguel Gaspar, estas imagens são feitas para legitimar o que os outros pensam de nós (Pública, 24/4). Legitimam sobretudo a tal ideia dos PIGS, ou seja, os países que estão na merda porque só fazem merda, ou não fossem da Europa do sul. É como diz ainda Miguel Gaspar no mesmo texto: "Por trás da batalha da dívida, da bancarrota e da crise, aparece uma batalha simbólica pela identidade."

E é claro que esta imagem/ideia me deixa indignada. Afinal, já basta o que basta. Mas nós, cidadãos, também somos culpados disto, não por falta de informação, mas por falta de ideias próprias, porque funcionamos muito como uma espécie de "povo-maria-vai-com-as-outras" e aceitamos passivamente  todos estes chavões distorcidos que, aliás, repetimos até à exaustão: olha, afinal, a crise não é para todos; pois, pois, estamos em crise, mas tá tudo de férias; estamos em crise mas os restaurantes estão cheios...etc, etc.  E também porque somos, e muito, movidos por invejas mesquinhas, do tipo "ai que a galinha da vizinha tem mais uma pena que a minha".

Como se o problema do descalabro económico do país estivesse no tal fim de semana baratinho no Algarve ou no jantar fora com amigos num restaurante assim-assim!... Enfim, poupem-me! Já me basta ter que ouvir as demagogias de um pseudo-governo em eterna campanha eleitoral e os delírios e delíquios de uma pseudo-oposição a acusar sintomas de carência de poder. Isto para já não falar do desconforto que me provoca a ideia de viver num país que é representado, tanto lá fora como cá dentro, por imagens como a de Marchante.

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