Logo no início do século XX tanto Max Weber (in A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo), como Walter Benjamin (in O Capitalismo como Religião) estabeleceram de forma clara, embora por vias distintas, a origem teológica do capitalismo e a sua clara relação com o calvinismo e o protestantismo.
Walter Benjamin encara o capitalismo como um fenómeno não apenas de índole religiosa, mas até como uma religião em si mesmo, como como se depreende das suas máximas mais conhecidas (citadas por Max Weber):
“Lembra-te que o tempo é dinheiro, quem pode ganhar com o seu trabalho dez xelins por dia e vai passear metade do dia, ou fica a preguiçar no quarto, não pode, mesmo se despender apenas seis dinheiros, com os seus prazeres, contar apenas esta despesa, pois acabou, na realidade, por gastar, ou melhor, por deitar fora mais cinco xelins.”;
“Lembra-te que o crédito é dinheiro. Se alguém me deixar ficar com o seu dinheiro depois da data em que eu teria de lho pagar, está a oferecer-me os juros ou tudo o que ele me tiver rendido durante este tempo.”;
“Lembra-te que o dinheiro tem uma natureza reprodutiva e fecunda. O dinheiro pode produzir dinheiro, e assim sucessivamente.”;
“Lembra-te que – como diz o ditado – um homem de boas contas é senhor da bolsa alheia. Quem for conhecido por pagar as suas contas pontualmente pode a todo o momento pedir emprestado todos o dinheiro que os amigos possam dispensar.”
É esta verdadeiramente a religião da avareza ou, como diz o próprio Max Weber, “o ideal do homem honrado e digno de crédito; e sobretudo, a ideia do dever do indivíduo para com o interesse no aumento do seu capital, tomado como um objectivo em si (...), uma «ética» particular, cujo não cumprimento é considerado não apenas loucura, mas uma espécie de falta ao dever.” (p. 49). Para Benjamin sãos os que acumulam dinheiro e riqueza os eleitos de Deus, os capazes de alcançar um estado de graça individual, os homens impregnados pela graça divina.
Max Weber contesta esta visão puramente moral de Benjamin Franklin, encarando o capitalismo como uma secularização do ideal religioso, ou como uma entrada da religião no “mercado da vida” (p.175). Mantendo a ideia de que só a acção e o trabalho – e nunca o ócio ou os prazeres – servem a vontade de Deus, considera contudo que, e citando John Wesley, “sempre que a riqueza aumenta, diminui o valor da religião em igual medida. (...) É que a religião produz necessariamente esforço (industry) e sobriedade (frugality) e, estas só podem causar riqueza. Mas quando aumenta a riqueza, aumentam também a vaidade, a paixão e o amor pelo mundo em todas as suas formas.” (p. 193).
Daqui resulta, segundo Weber, que “Com a consciência de estar em estado de graça e com a bênção de Deus, o empresário burguês, no caso de se manter nos limites da correcção formal, de a sua acção ética não revelar manchas e de o uso da riqueza não ser inconveniente, podia (e era obrigado) a prosseguir os seus interesses económicos. (...) E dava-lhe ainda a certeza apaziguadora de que a distribuição desigual dos bens deste mundo era obra da divina Providência e que tanto essa distribuição como a atribuição da graça divina perseguia fins desconhecidos dos homens. [O próprio] Calvino já dissera, frequentemente, que o «povo», isto é, a massa dos trabalhadores e artesãos, só na pobreza continuava obediente a Deus.” (pp.194-195).
Ainda nesta visão do capitalismo segundo Max Weber, “O sucesso capitalista do membro de uma seita [protestante] era, se justo, prova da sua confirmação e capacidade, aumentando o prestígio e as oportunidades de propaganda da seita e sendo, por essa razão, bem aceite...” (p.311).
Estava assim aberta a porta para o fascínio do dinheiro e da especulação financeira enquanto sistema com um único objectivo: “produzir mais lucro e riqueza para um número reduzido de pessoas (...) no mínimo de tempo” (Samuel Weber, In Expresso-Actual, 7/8/2010), isto é, para o capitalismo tal como o conhecemos hoje. E foi Karl Marx quem melhor descreveu esta tendência - ou mesmo ânsia - muito enraizada na mentalidade capitalista, dizendo que, nesse mesmo capitalismo, cada limite é uma fronteira que deve ser transposta, ou seja, se não se cresce continuamente, diminui-se, podendo mesmo vir a perder-se tudo.
O capitalismo é, assim, e voltando novamente a Samuel Weber, uma “reacção secular a um problema que foi posto primeiro num contexto teológico. O tempo tem duas dimensões: a da autorrealização (self-fulfillement) e a da perda, a do caminho para a morte.” (idem, ibidem) Num certo sentido “a acumulação de riqueza sem limites suscita uma resposta defensiva ao medo de que o tempo caminhe para a destruição do indivíduo e não para a autorrealização.” (idem, ibidem)
As teorias de Walter Benjamin, de Max Weber e de Karl Marx sobre o capitalismo distinguem-se ainda na forma como olham para o dinheiro em si e para os processos de criação de riqueza. Para Walter Benjamin ela vem sobretudo do juro (do dinheiro, portanto) mais do que do trabalho; enquanto este é, para Marx, o factor decisivo na criação dessa mesma riqueza. Já Weber, no espírito da ética protestante, concilia de certa forma as duas visões, pois afirma que o trabalho também dignifica o indivíduo. Na opinião de Samuel Weber “A modernidade europeia, ocidental, é o resultado destas duas coisas: por um lado, a esperança de uma graça individual que nasceu com Jesus; por outro, a desconfiança em relação à via universalista.” (à ideia de que todo o indivíduo é salvável se for à missa, se confessar os pecados, etc.). (idem, ibidem)
Quanto à criação de riqueza através da especulação financeira, marca indelével da nossa época, é óbvio que algo se descontrolou e o monstro se tornou maior que o seu criador, o que originou o colapso que todos conhecemos e abriu uma crise financeira e económica sem precedentes que, para Samuel Weber, ultrapassa, e muito, a simples “razão económica”. Segundo este pensador, “os antecedentes desta crise são muito mais culturais, históricos e mesmo tecnológicos. Para a compreendermos, é importante termos uma perspectiva que coloca também questões psicológicas, além das culturais e teológicas...” (idem, ibidem). A este propósito, Samuel Weber recorda até que “a palavra «crise», não devemos esquecer, está no centro da reflexão filosófica no século XX” e que a própria palavra em si “não é de modo algum do domínio económico”. De certa forma, “o dinheiro (...) poderá ser visto como uma maneira de estabelecer uma mediação entre essa expectativa de um certo destino imortal ligado à origem do mundo, no plano bíblico, e a força do dinheiro para compensar a mortalidade que o pecado instaurou.”
Embora por vias distintas, o dinheiro continua assim, nos dias que vivemos, a ser “um signo do ser eleito, um signo da graça” (tal como descreveu Max Weber) e, por isso, continua a alimentar “o modelo da especulação ilimitada do capitalismo” que, sendo teológico na sua base e na sua origem tem também “razões psicológicas e antropológicas” (idem, ibidem).
Ou seja, deixemo-nos de fantasias ingénuas e demagógicas: a verdade é que não será nada fácil alterar este satus quo, sobretudo quando estão em causa fundamentos tão complexos como estes.