Deliciei-me ontem ao fim da tarde, na Sic radical, com mais um episódio de "No reservations" de Anthony Bourdain, desta vez sobre a cozinha da Creta. O seu guia local era uma espécie de sósia do nosso grande gastrónomo alentejano Alfredo Saramago. Para além da belíssima e agreste paisagem de uma terra ainda relativamente a salvo do turismo de massas (e em alguns aspectos semelhante ao nosso Alentejo), descobri similitudes muito curiosas com as nossa tradições culinárias: é que os cretenses consomem, tal como nós, um grande número de plantas selvagens que vão colhendo nos campos de acordo com a generosidade das estações.
Anthony Bourdain é um chef americano que ganhou notoriedade com a publicação do livro "Cozinha Confidencial", o qual, se não lhe granjeou inimigos, garantiu-lhe certamente muitas inimizades, ou não tivesse como subtítulo "Aventuras no submundo da restauração". Nele, para além de muitas verdades inconvenientes sobre o mundo da restauração e da alta cozinha, como esta, por exemplo: “A área de preparação tinha sempre três gigantescas chaleiras cheias de um caldo concentrado escuro e polivalente, a fervilhar interminavelmente sob uma “jangada” de carne moída, restos de carne, ossos de galinha, carcassas de peru, pontas de legumes, peles de cenoura e cascas de ovo. Quando havia falta de comida, os cozinheiros chegavam a passar a concha por este composto a flutuar na superfície, misturavam-no com um pouco de molho de tomate e massa falecida e serviam-no a um pessoal inexplicavelmente agradecido.” (p.125). Nele Bourdain revela-se sobretudo uma pessoa frontal, sem medo de assumir as suas fraquezas e vícios:
Quando começou a fazer programas sobre cozinha na televisão levou com ele essa atitude e aprofundou ainda mais o lado explosivo, arrogante, exigente e, muitas vezes, antipático da sua personalidade, até chegar a verdadeiro pica-miolos da produção exigindo só do bom e do melhor. Come, e bebe, com um prazer próximo da lúxuria e sem medo de cair no politicamente pouco correcto em televisão. Esse apetite voraz pela aventura culinária, já estava, aliás, bem presente no livro. Como ele próprio escreveu: “Boa comida e comer bem é uma coisa que envolve algum risco. Por exemplo, de vez em quando aparece uma ostra que me dá um desarranjo de estômago. Quer isto dizer que devo deixar de comer ostras? Nem pensar. Quanto mais exótico é o manjar mais aventuroso é o verdadeiro gourmet e maior a probabilidade de algum incómodo posterior. Não me vou negar aos prazeres de uma morcela, ou de um sashimi, ou mesmo de uma ropa vieja na tasca cubana, só porque às vezes não me sinto muito bem algumas horas depois.” (p. 75). Quando gosta é a sério e afirma-o de modo exuberante e sem subterfúgios. Quando não gosta também. Aliás, não é por acaso que o programa é antecedido e interrompido várias vezes pelo aviso de que "contém imagens que podem chocar os espectadores sensíveis". Decididamente "No Reservations" não é um formato televisivo convencional, daqueles tipo verbo de encher grelha de programação da tarde e vale bem o tempo que consumimos a vê-lo.
Ora Bourdain até já passou por Portugal numa fase inicial da sua carreira televisiva, quando ainda não tinha aprofundado tanto os dotes de ironia, cinismo e voracidade que tornam cada um destes seus "No Reservations" numa verdadeira aventura radical. Mas ficou-se pelo norte e centro do país, à conta das origens do amigo português radicado nos Estados Unidos que o guiou nesta viagem por terras lusas. Comeu do bom e bebeu do melhor, sobretudo bacalhau e vinho do Porto e, por isso, o programa foi intitulado "Cod Crazy" (pode ser visto nestas hiperligações: parte 1 e 2).
No entanto, depois de ver o programa de ontem sobre Creta e de ouvir os comentários de Bourdain acerca da comida cretense não posso deixar de imaginar qual seria a sua reacção e os seus comentários se alguém o convidasse a vir ao Alentejo para comer, entre tantas possibilidades, uma açorda perfumada com poejos colhidos num ribeiro, a provar umas superlativas migas de espargos bravos, a devorar uma aromática sopa de tomate com todos os seus matadores (figos incluídos), a degustar um belo cozido de grão com cardos e a fazer um tour aí por umas tascas semeadas na planície para comer uns petiscos preparados na hora, regados com uns copos de tinto, à mistura com uma sessão de espontâneo cante alentejano ao balcão. É pena que, no âmbito cultural e turístico, os municípios alentejanos se esqueçam tantas vezes de ousar pensar nestes novos meios de divulgação, tão poderosos e com retorno garantido. Ainda por cima sem terem que gastar milhões em campanhas publicitárias. Sim, que eu ontem só não fiz logo ali as malas e abalei para Creta porque sou uma pelintra, mas há por aí muita gente que até o poderia fazer se lhe apetecesse.
Mas, caro chef Bourdain, mesmo assim, quando quiser, estou disponível para lhe dar a provar os extraordinários e genuínos segredos culinários da nossa sulidão. Atrevo-me a pensar que não ficará desiludido.
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