No início do séc. XX (1904-5) Max Weber foi à procura das respostas para uma questão curiosa: por que motivo surgiu o modelo económico do capitalismo em países maioritariamente protestantes como a Inglaterra ou a Alemanha? Concluiu depois, num livro intitulado “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, que o modo de vida e as doutrinas propostas pelas igrejas protestantes dos séc. XVI e XVII, em particular o calvinismo, estabeleceram formas de vivência da religiosidade que criaram as condições necessárias ao aparecimento dos ideais capitalistas. É que os protestantes e calvinistas acreditam na predestinação, ou seja, que todos os homens nascem predestinados à salvação ou à condenação. Só que, como não existe forma de se saber qual é o nosso destino, devemos esforçar-nos para pôr as nossas capacidades ao serviço de Deus e orientar a nossa vida terrena no sentido de procurarmos ser bem sucedidos. Por isso, ter sucesso na vida terrena significa que se está protegido por Deus e isso constitui um bom indicador de que se alcançará a salvação eterna*. Esta ânsia de sucesso é, sobretudo, uma ética do trabalho que impõe uma enorme autodisciplina e um acumular de riqueza que, com o tempo, deram origem ao capitalismo tal como o conhecemos hoje, em que a única ética reconhecida e valorizada é a do lucro sempre crescente, baseado na especulação e em taxas de produtividade e de consumo febris.
É um pouco na continuidade desta linha de análise histórica e de procura de respostas que se insere o livro de um dos grandes especialistas em história contemporânea, Tony Judt, “Ill fares the land”. Claro que, nos dias que vivemos, já há muito que a cultura capitalista moderna deixou para trás os princípios éticos e doutrinários do calvinismo e do protestantismo, tendo evoluído para o puro vazio moral do neoliberalismo. A partir da década de 80 acentuou-se mesmo “a obsessão com a criação de riqueza, o culto da privatização e do sector privado, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E, acima de tudo, a retórica que as acompanha: a admiração acrítica dos mercados livres, o desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento eterno”.
“Ill fares the land” é, assumidamente, um manifesto em defesa de um dos grandes ideais políticos da esquerda: uma sociedade diferente e mais justa. O historiador defende a opinião de que, a prazo, este modelo neoliberal em que estamos mergulhados é insustentável por causa das desigualdades que gera e das tensões sociais que provoca: “Do final do séc. XIX até aos anos 70, as sociedades avançadas do Ocidente tornaram-se todas menos desiguais. Graças aos impostos progressivos, aos subsídios do governo aos mais pobres e à provisão de serviços sociais e garantias contra as desgraças imprevistas, as modernas democracias foram apagando os extremos da riqueza e da pobreza”. Porém, “nos últimos trinta anos deitámos tudo isso fora”: em 1968 o salário do CEO da General Motors que, em 1968, levava para casa 66 vezes o valor pago a um operário típico das fábricas da GM; enquanto hoje em dia o CEO da Wal-Mart ganha 900 vezes o salário médio de um dos funcionários desta cadeia de lojas. Ora, estas profundas desigualdades têm contaminado todas as camadas sociais com o vírus da violência e da exclusão. Judt alerta: “Somos muitas vezes cegos a isto, os nossos sentimentos morais foram, de facto, corrompidos. Tornámo-nos insensíveis aos custos humanos de políticas sociais aparentemente racionais.”
Por isso, nesta obra, Judt desenvolve a tese de que a social-democracia e o chamado estado-providência são os melhores modelos de governação política, de sustentação de sociedades mais igualitárias, equlibradas e consensuais, sem prejuízo da tolerância democrática e da liberdade individual. Este verdadeiro manifesto ideológico tem destinatários perfeitamente identificados pelo autor – os cidadãos dos países ocidentais, e em especial os “jovens de ambos os lados do Atlântico”, porque “a divergência e a dissidência são fundamentalmente trabalho dos jovens”, e porque “a última vez que uma geração expressou comparável frustração pelo vazio e a desinspiradora falta de sentido do mundo foi nos anos 20”.
Contudo, não é o muito apontado (nomeadamente pelos nossos desgovernantes) modelo nórdico da social-democracia que Judt defende, por considerar que também ele está crivado de erros graves que ninguém teve a coragem ou a vontade de corrigir e que, ao longo do tempo, se foram agravando: projectos de eugenia impensáveis e inaceitáveis; planeamento urbano desastroso; ausência de resposta do Estado para os socialmente desfavorecidos (bolsas de pobreza, guetos sociais, imigração), direitos que se foram tornando abusos (reformas antecipadas).
Tony Judt considera que a social-democracia não representa o passado nem o futuro ideais “Mas, entre as opções hoje disponíveis para nós, é melhor do que qualquer outra coisa ao nosso alcance”. Assim, face ao perigo dos extremismos à direita e à esquerda, o modelo que nos resta analisar, defender e desenvolver “é o consenso social do pós-guerra que mobilizou a democracia cristã, o conservadorismo britânico e alemão ou a social-democracia nórdica.” pois, apesar de tudo e como lembra Ralph Dahrendorf, “significa o maior progresso a que a História já assistiu. Nunca tantos tinham antes experimentado tantas oportunidades de vida”. Citando Adam Smith - “nenhuma sociedade será florescente e feliz se uma grande parte dos cidadãos for pobre e miserável” -, Judt invectiva os jovens ocidentais a “zangarem-se” e a criticarem quem os governa, erguendo a voz contra a actual degradação social e económica, em nome de uma suposta racionalização dos recursos, e a reclamarem que o Estado “reocupe a posição central da vida colectiva. Não o Estado totalitário dos extremismos do séc. XX, mas o Estado democrático e activista que configurou o “New Deal” e a “Great Society” nos Estados Unidos, ou o mercado social alemão”. As questões sociais continuam a ser fulcrais na agenda política ocidental e, por isso, o autor questiona: “Como devem as massas trabalhadoras ser trazidas para a comunidade – como eleitores, como cidadãos, como participantes – sem sublevação, protesto ou mesmo revolução?”. “As respostas da social-democracia mostraram-se espectacularmente bem sucedidas: não só se evitou a revolução como as massas trabalhadoras foram integradas num admirável grau”.
Judt conclui então com um apelo claro: “Temos agora de nos libertar da noção [de que] o Estado é a pior opção disponível”. Para que isso possa acontecer, os mais jovens têm de aprender com as lições do passado (“os perigos de um Estado activista”), e também aprender “a pensar o Estado de novo”
A tese de Tony Judt é também uma utopia no seu melhor sentido: o sonho de transformar o mundo através da vontade colectiva. É pena que, nestes tempos cinzentos e áridos, seja sobretudo uma voz dissonante que clama no deserto de ideias e de ideais em que estamos megulhados. É pena que tenhamos de bater mesmo no fundo para então, e só então, nos vermos forçados a começar a repensar o rumo das coisas.
*Para os católicos, pelo contrário, o acesso à vida eterna está garantido através da absolvição dos pecados confessados, pois Deus é infinitamente bom e perdoa todos os que demonstrem arrependimento sincero em relação aos seus erros e más acções. Digamos assim: é um bom princípio, mas que leva às más práticas e vidas que todos conhecemos sobejamente, até no seio da própria igreja.
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