Dez anos antes de terminar o milénio, Italo Calvino publicou “Seis propostas para o próximo milénio”. Estas propostas correspondem, na verdade, ao ciclo de conferências – as Charles Eliot Norton Poetry Lectures - que o autor foi convidado a fazer na Universidade de Harvard, ao longo do ano lectivo 85-86.
As seis propostas literárias que então apresentou eram: 1. Leveza; 2. Rapidez; 3. Exactidão; 4. Visibilidade; 5. Multiplicidade; 6. Consistência.
Na terceira dessas propostas – Exactidão - Calvino começa por dizer que sofre de uma “hipersensibilidade ou de uma alergia” (p.74) à forma como a linguagem é tantas vezes usada: “parece-me que a linguagem se usa sempre de maneira aproximativa, casual, descuidada, e isso provoca-me um aborrecimento intolerável. Não pensem que esta minha reacção corresponde a uma intolerância para com o próximo: o aborrecimento pior sinto-o ao ouvir-me falar a mim próprio. Por isso tento falar o menos possível, e se prefiro escrever é porque ao escrever posso corrigir as frases quantas vezes forem necessárias para chegar, não digo a ficar satisfeito com as minhas palavras , mas pelo menos a eliminar as razões da insatisfação de que consigo aperceber-me. (p. 74)
Italo Calvino desenvolve depois o seu raciocínio dizendo que: “Às vezes parece-me que uma epidemia pestífera atingiu a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, ou seja, o uso da palavra, uma peste da linguagem que se manifesta como perda de força cognitiva e de imediatismo, como um automatismo com a tendência para nivelar a expressão nas fórmulas mais genéricas, anónimas e abstractas, para diluir os significados, para embotar os pontos expressivos, para apagar toda a centelha que crepite do encontro das palavras com novas circunstâncias.(...)
E acrescentarei que não é só a linguagem que me parece atingida por esta peste. Também as imagens, por exemplo. Vivemos debaixo de uma chuva ininterrupta de imagens; os mais poderosos media não fazem senão transformar o mundo em imagens e multiplicá-lo através de uma fantasmagoria de jogos de espelhos: imagens que em grande parte estão privadas da necessidade interna que deveria caracterizar toda a imagem, como forma e como significado, como força de se impor à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte desta nuvem de imagens dissolve-se imediatamente, tal como os sonhos que não deixam marcas na memória; mas não se dissolve uma sensação de estranheza e mal-estar.
Mas talvez a inconsistência não esteja só nas imagens ou só na linguagem: está no mundo. A peste também atinge a vida das pessoas e a história das nações, torna todas as histórias informes, casuais, confusas e sem pés nem cabeça. “ (pp. 74-75)
Esclarece ainda Calvino que: “Não me interessa aqui interrogar-me se as origens desta epidemia se devem procurar na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media, na difusão académica da cultura média.” (p. 74) O que lhe interessa são “as possibilidades de salvação” (p. 74) da linguagem que, segundo o autor, estão todas na literatura, mas apenas na literatura que corresponde à sua definição de “exactidão”: “um projecto da obra bem definido” (p. 73), “a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis” (p.73) e, sobretudo, “uma linguagem o mais precisa possível como léxico e na sua capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação” (p.73). Segundo Calvino, só esta literatura “é a Terra Prometida em que a linguagem se torna o que realmente deveria ser” (p. 74) e talvez só ela possa “criar anticorpos que combatam a expansão da peste da linguagem.” (p.74)
Dez anos após o início do milénio para o qual Calvino redigiu estas suas propostas, podemos dizer que a sua descrição se confirma em pleno: a sociedade da informação à escala global é, afinal, o grande vazio da comunicação. Na verdade, falamos, escrevemos e lemos a um ritmo cada vez mais frenético, mas estamos cada vez mais afastados de uma verdadeira comunicação, consistente e significativa. A comunicação interpessoal está saturada de mal-entendidos, de frases vazias de sentido e, sobretudo, de não-ditos, de coisas que preferimos não dizer porque a verdade, a profundidade, a autenticidade, a tal “consistência” que Calvino tanto prezava, assusta cada vez mais um crescente número de pessoas. É, pois, mais fácil, ou talvez menos doloroso, ficar pelas banalidades, pelos estereótipos e pelos rótulos. Fala-se ou escreve-se só para fazer barulho, só para entrar na corrente ininterrupta da comunicação, no faz-de-conta que estamos a comunicar, a sério, com imensas pessoas. No fundo, não passamos muito além daquilo que, em teoria da comunicação, se designa como função fática, isto é, o ruído que nos permite iniciar a comunicação ou sinalizar que estamos/continuamos a comunicar com alguém, mas que, em si mesmo, não transmite qualquer informação e não tem, por isso, qualquer consistência comunicativa. E o mesmo é válido para os media – basta ver como os telejornais são feitos da repetição sistemática das mesmas imagens e notícias até à saciedade total, para se perceber isso mesmo. E para a própria literatura: os escaparates estão cheios de calhamaços que não são mais do que ruído de fundo, centenas de páginas que não dizem nada, não acrescentam nada, não fazem pensar nem reflectir sobre coisa nenhuma. São apenas mais do mesmo. E talvez seja por isso que se tornam “best sellers”, embora se lhes possa claramente aplicar a mesma máxima das chamadas publicações “cor-de-rosa”: está feita, está morta! O que nos vale é que, no meio desta vaga gigantesca de palavreado inútil, lá vão aparecendo livros e autores que valem, de facto, a pena. E enquanto as editoras não desistirem de os publicar talvez ainda haja esperança para este milénio.
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