Muito se tem noticiado, analisado e comentado nestes últimos dias sobre o crescente número de empresas em situação de falência. No entanto, há mais do que empresas a falir. Praticamente todo o interior do país está em processo de falência humana e social. Processo lento, silencioso, porém inexorável.
Quando, há já quase quatro décadas, os vapores da revolução de 74 ainda se cheiravam no ar, a ideia era dotar todas as aldeias, vilas e pequenas cidades do interior com os serviços públicos essenciais: água, luz, saneamento, transportes, estradas, serviços de saúde e escolas. Procedeu-se também à desmultiplicação de um conjunto de serviços que, não sendo indispensáveis, eram relevantes para a chamada “qualidade de vida” das populações: correios, finanças, bancos, farmácias ou postos de medicamentos.
Hoje verifica-se que, nem mesmo os chamados serviços básicos, chegaram a todo o lado: a luz eléctrica está praticamente generalizada (mas ainda há quem não tenha), a água canalizada chegou a muitos sítios, mas o saneamento, por exemplo, já deixou muito a desejar e continua a não existir em numerosas aldeias espalhadas pelo interior, de norte a sul do país. A crescente desertificação – numa população que também nunca foi muito numerosa - é o que explica, em muitos desses sítios, o desinvestimento na criação dessas valências, uma vez que, ao longo de todo este tempo, se verificou um outro fenómeno paralelo, porém, muito relevante para o que está a acontecer agora: o êxodo da população mais jovem para a faixa litoral em busca dos empregos que nunca existiram, ou foram deixando de existir no interior. Esta perda da população mais jovem tem consolidado o crescimento de megacidades no litoral, essas sim, bem dotadas de equipamentos e com serviços de qualidade.
Desde a década de 90 que nos habituámos aos anúncios governamentais que, em nome da racionalização dos recursos humanos e financeiros, vão dando conta do encerramento dos serviços mais diversos (alguns deles só conquistados graças, justamente, à democracia): comboios; postos de correio; finanças e outras repartições públicas; serviços de saúde, nomeadamente urgências e maternidades; postos de polícia/guarda etc. Embora os protestos das populações sejam reconhecidos como justos e os seus contra-argumentos se revelem muitas vezes razoáveis, a verdade é que o processo de encerramento progressivo do interior do país tem sido inexorável.
O fecho das escolas, que vai já na segunda leva, é disso paradigmático. Em muitas aldeias do interior elas representam o único sinal possível de esperança da comunidade. Elas são sobretudo um símbolo de continuidade, assim uma espécie de faz-de-conta para enganar o vazio (tão legítima como outra coisa qualquer). Claro está que, lá no fundo, todos sabem que, sendo a agricultura de subsistência a única possibilidade que estas comunidades oferecem aos jovens para sobreviverem, é só uma questão de tempo até que todos acabem por sair em busca de empregos no litoral ou no estrangeiro. Muito poucos se poderão “dar ao luxo” de ficar pela terra em que nasceram se quiserem ter condições mínimas de vida. Até porque o desinvestimento e o encerramento de serviços as torna ainda menos atractivas, sobretudo para uma população mais jovem com vivências e anseios muitos distintos dos seus avós e pais, por exemplo.
Encerradas as escolas, transportados os alunos para os Centros Escolares (a própria designação já diz quase tudo sobre o que lá se pretende fazer), tem início um processo de socialização, uniformização e aculturação das crianças a uma vivência sobretudo urbana - e agora também global – que rapidamente as fará esquecer as tradições e laços sociais e identitários das suas comunidades de origem. Entretanto, na aldeia, ficam apenas os velhos. Enquanto espaço físico e social a aldeia existirá enquanto os velhos sobreviverem. O único investimento a que obrigam, por força das circunstâncias, é à criação de centros de dia e de lares que darão emprego aos pais e mães dos meninos transportados para os tais centros escolares.
E o que já não falta por aí são aldeias-fantasma, embora haja também alguns epifenómenos: pequenas comunidades que se revitalizaram em torno de uma pequena indústria ou negócio criado por algum emigrante que regressou e investiu na terra onde nasceu, ou de um projecto de turismo criado por alguém que abandonou voluntariamente a grande cidade porque escolheu viver de outra forma. Seja como for, não chega para fazer a diferença, não tem força para travar o fenómeno do despovoamento e da desertificação acelerada que estamos a viver. Seriam necessárias outras opções políticas e económicas, outras medidas e outra antevisão do futuro.
Também não consigo perceber muito bem como é que andamos há já tantos anos a encerrar paulatinamente o interior do país em nome da racionalização e da poupança dos escassos recursos das finanças públicas e nos vemos agora enfiados nesta “crise” que nos obriga a ainda maiores sacrifícios. Cada vez mais acho toda esta história mal contada. Sobretudo acho que andamos muito mal governados, nós e o dinheiro dos nossos impostos. Às vezes interrogo-me: e quando já não houver mais nada para fechar no interior do país? Fechamos o próprio país? (não me admirava muito que já houvesse por aí algum discreto grupo de assessores a ser pago para "estudar" o assunto).
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