Carlo Maria Cipolla escreveu, na década de 70, um pequeno ensaio “espirituoso”, como o próprio autor o designa, intitulado “As leis fundamentais da estupidez humana” que publicou e distribuiu apenas pelos amigos mais próximos. Mas o interesse suscitado pelo texto forçou o autor a considerar a sua publicação a uma escala mais alargada (Editora Texto & Grafia, 2008).
Nele Cipolla distribui os seres humanos por quatro categorias fundamentais: os ingénuos, os inteligentes, os bandidos e os estúpidos (p. 69). Mas como podemos distinguir uns dos outros? Pela forma como está exposto até parece fácil:
“Se Fulano realiza uma acção e sofre uma perda e, ao mesmo tempo, proporciona uma vantagem a Sicrano (…): Fulano agiu como ingénuo” (p. 69).
Se Fulano “realiza uma acção da qual obtém uma vantagem e, ao mesmo tempo, também proporciona uma vantagem a Sicrano (…): Fulano agiu inteligentemente” (p. 69).
“Se Fulano realiza uma acção da qual retira uma vantagem causando uma perda a Sicrano (…): agiu como um bandido” (p. 69).
Mas se Fulano realiza uma acção da qual não retira proveito e com a qual, ainda por cima, provoca “prejuízos, frustrações e dificuldades” (p. 71) a Sicrano, sem que ninguém seja capaz de explicar racionalmente as razões que levaram Fulano a fazer essa mesma acção, então estamos perante um estúpido.
Até aqui a coisa ainda é mais ou menos consensual, apesar de haver certamente várias hipóteses de subverter a “quadratura” deste esquema, até porque a coerência não é, decididamente, a mais forte qualidade humana. As más notícias, contudo, começam a chegar logo depois.
Para Cipolla a ideia muito ocidental de que os homens são por natureza iguais e de que a existência de uns mais iguais que outros se fica a dever apenas à educação ou ao ambiente social é completamente errada. A existência de estúpidos é tão certa e inevitável como o grupo sanguíneo e deve-se apenas aos insondáveis caprichos da Mãe Natureza. Para Carlo Cipolla a experiência demonstra que, em todos as épocas e sociedades, a percentagem de estúpidos no total da população se mantém constante, da mesma forma que se mantêm constantes certos fenómenos naturais. Por isso, a estupidez é também uma prerrogativa indiscriminada de todo e qualquer grupo humano” (p. 62), imune às influências de “tempo, espaço, raça, classe ou outra qualquer variável histórica ou sociocultural” (p. 87). O autor desmistifica ainda a ideia de que o número de estúpidos numa sociedade decadente seja maior do que numa sociedade em ascensão. Ele considera que o seu número é idêntico em ambas, senda distinta a reacção social à sua existência: a sociedade decadente permite que “os membros estúpidos sejam mais activos” (p. 88), enquanto a sociedade em ascensão apresenta “também uma percentagem insolitamente elevada de indivíduos inteligentes que se esforçam por manter sob controlo” (idem) os estúpidos.
E como se estas não fossem já ideias suficientemente perturbadoras, Cipolla ainda atribui aos sexto e sétimo capítulos do seu ensaio os títulos de “Estupidez e Poder” e “O Poder da Estupidez”, respectivamente. No primeiro afirma que os danos potenciais que os estúpidos podem causar tanto nos outros indivíduos, como na comunidade ou até na própria sociedade varia em função de aspectos distintos: por um lado, o maior ou menor peso do factor genético pode fazer com que determinados indivíduos pertençam, “desde que nascem, à elite do seu grupo” (p. 77); por outro, também a própria posição de poder e autoridade que ocupam na sociedade pode potenciar os efeitos dos seus actos, uma vez que “Entre burocratas, generais, políticos, chefes de Estado e homens da Igreja” (p. 77), encontramos uma percentagem de estúpidos idêntica à dos outros estratos sociais.
A interrogação que se impõe neste ponto do texto é a de saber como é que pessoas “fundamentalmente estúpidas” (p. 77) conseguem chegar a posições de poder e de autoridade. Cipolla responde de modo muito simples: na época pré-industrial, “As origens de classe ou de casta (laicas ou eclesiásticas) foram os ingredientes sociais que permitiram um afluxo constante de pessoas estúpidas a posições de poder” (p. 78); na época industrial moderna, o papel da classe e da casta foi assumido pelos partidos políticos, pela burocracia e até pela democracia. O ensaísta afirma mesmo que “No interior de um sistema democrático, as eleições gerais são um instrumento de grande eficácia para assegurar a manutenção estável da fracção σ [símbolo usado por Cipolla para indicar o número provável de pessoas estúpidas no seio de uma população]”, até porque não podemos esquecer que uma certa percentagem dos votantes é também ela constituída por estúpidos.
E os estúpidos com “poder político, económico ou burocrático” (p. 79) tornam-se sobretudo perigosos “porque as pessoas razoáveis têm dificuldade em imaginar e compreender um comportamento estúpido” (idem). Segundo Cipolla é mais fácil perceber a lógica de um bandido (que é, grosso modo, um indivíduo que obtém um “mais” na sua conta bancária provocando um “menos” na conta do próximo), pois ela é linear e previsível, do que a de um indivíduo estúpido, pois “Não temos nenhum meio racional de prever se, quando, como e por que motivo uma pessoa estúpida vai levar por diante o seu ataque. Perante um indivíduo estúpido, estamos por completo à sua mercê.” (p. 80) Ainda com uma outra agravante: “a pessoa inteligente sabe que é inteligente; o bandido tem consciência de que é bandido; o ingénuo está penosamente compenetrado da sua falta de prevenção. Ao contrário de todas estas personagens, o estúpido não sabe que é estúpido: e isso contribui para dar maior força, incidência e eficácia à sua acção devastadora” (pp. 80-81)
Um outro aspecto que potencia ainda mais os perigos desta situação é o facto de, surpreeendentemente, até mesmo as pessoas inteligentes e os próprios bandidos terem dificuldade em “reconhecer o poder devastador e destrutivo da estupidez, sendo extremamente difícil de explicar porque é que isto acontece” (p. 83). Cipolla avança algumas hipóteses: porque se entregam a sentimentos de complacência ou de desprezo, ou porque são levados a “crer que uma pessoa estúpida só faz mal a si própria” (p. 83).
Aplicando o raciocínio do autor à realidade social obtemos mais ou menos isto: “Se todos os membros de uma sociedade fossem bandidos perfeitos, a sociedade permaneceria em condições de estagnação, mas não se verificariam grandes desastres”; “Mas quando os estúpidos metem mãos à obra, a história é outra (…) e daí resulta que toda a sociedade empobrece” (p. 83); enquanto que numa sociedade em ascensão os indivíduos inteligentes conseguem manter sob controlo os estúpidos, ao mesmo tempo que “produzem para si próprios e para os restantes membros da comunidade benefícios suficientes para fazer do progresso uma certeza” (p. 88).
E Carlo Cipolla conclui o seu ensaio definindo o que considera ser, à luz desta sua teoria, um “país em declínio”: aquele em que “a percentagem de estúpidos é sempre igual a σ; todavia, na restante população nota-se, especialmente entre os indivíduos que se encontram no poder, uma alarmante proliferação de bandidos com uma alta percentagem de estupidez (…) e, entre aqueles que não estão no poder, um aumento igualmente alarmante do número dos ingénuos (…). Uma tal mudança na composição da população dos não estúpidos reforça inevitavelmente o poder destrutivo da fracção σ dos estúpidos e leva o País à ruína.” (p. 89).
Mas o mais confrangedor é verificar diariamente como, em alguns aspectos fundamentais - governação, política, economia, finança - apresentamos, de facto, muitas das características de uma “sociedade em decadência” no sentido que Carlo Cipolla, com tanta argúcia, atribui ao conceito. E claro que em muitas coisas, demasiadas, também me reconheço no grupo dos ingénuos.
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