segunda-feira, 31 de maio de 2010

Algo de interessante aqui pela sulidão também é um festival de música assim

Um país à beira-mar (mal) urbanizado

Duas Linhas é a designação de um interessante projecto dos arquitectos Pedro Costa e Nuno Louro. Consistiu no registo fotográfico da realidade urbanística do país, realizado ao longo de duas linhas paralelas traçadas de norte a sul. Duas Linhas é também um livro que conta com a análise crítica de vários especialistas portugueses e uma exposição itinerante.

Ao arrepio de algumas ideias feitas os dois autores concluiram que “Nem sempre a costa é mais densa e o interior menos ocupado” e que, muitas vezes, o grande problema reside sobretudo na dispersão urbanística, já que é mais rentável construir na periferia das cidades do que reabilitar os edifícios no perímetro urbano.

As origens históricas deste problema situam-se, segundo Vasco Mantas (Univ. Coimbra), na época romana, tendo-se criado “uma dinâmica que vai ser difícil de contrariar” e cuja principal desvantagem são os custos acrescidos que implica “a manutenção de um conjunto de actividades e serviços caros para servir uma população reduzida” num interior desertificado.

Jorge Gaspar (Univ. Lisboa) explica que a dispersão urbanística é um fenómeno multifacetado que resulta “de uma alteração nos estilos de vida e de urbanização das pessoas”, associado primeiro à necessidade de garantir habitação para “uma mão-de-obra industrial, agrícola (esta mais sazonal) de uma determinada região”, ou ainda para assegurar o vasto sector dos serviços na capital e, nas últimas décadas, associado também a uma especulação imobiliária que levou à primazia do direito de propriedade sobre a aptidão dos terrenos.

Já a realidade urbanística do norte do país, em particular do vale do Ave, é descrita por Vincenzo Riso (Univ. Minho) como “original” pois, ao longo do tempo, as actividades agrícolas, os núcleos habitacionais e as fábricas desenvolveram entre si estreitas ligações”. As recomendações e conclusões a que chega relativamente a esta zona do país são, quanto a mim, válidas para outras zonas do território: “além da indispensável atenção para zonas específicas a salvaguardar (…), (a paisagem como valor social)”, “em termos económicos a dispersão das construções viabiliza actividades flexíveis e de pequena dimensão, mas implica uma grande extensão das redes infra-estruturais, cujos custos acrescentados acabam por incidir sobre a colectividade”.

Para Riso o mais importante é perceber que “o território é um bem limitado e não renovável e, no longo prazo, a urbanização difusa vai acabar por tornar-se insustentável”. Esta ideia é corroborada por João Alveirinho Dias (Univ. Algarve) para quem a concentração urbanística no litoral não constitui em si mesma um problema desde que “a construção respeite o funcionamento natural dos sistemas”, nomeadamente as chamadas “zonas de risco” junto ao litoral, onde não deveria existir qualquer construção. Aponta como exemplos a Ria Formosa, o cordão dunar da lagoa de Aveiro e as arribas escarpadas do Algarve, zonas onde “as pressões imobiliária e turística” estão já a criar grandes problemas à preservação dos ecossistemas, podendo a situação vir a tornar-se irreversível.

Vasco Mantas (Univ. Coimbra) é mais radical pois considera que o Algarve já “está perdido”. Parece-lhe, todavia, que o litoral alentejano ainda pode ser devidamente salvaguardado, desde que se evite a criação de “uma Saint-Tropez de quarta categoria, que induz um tipo de turismo em que não vale a pena apostar”.

A dúvida que se me levanta agora é saber se, face às promessas de tantos milhões de investimento e de outros tantos de lucro fácil, associados a umas quantas centenas de empregos (ainda que transitórios, pois quando estiver estragado, os investidores voltarão costas e irão procurar outra zona ainda intacta), terão os autarcas do litoral alentejano a força suficiente para dizer “não”? Duvido muito.

Terão os nossos (des)governantes, na actual situação de profunda crise económica, a coragem de impor regras aos especuladores que estão a construir futuras cidades-fantasma no litoral do país? Duvido ainda mais.

E quanto aos 'grandes projectos' que se anunciam aí um pouco por toda a parte – o turismo, a qualidade de vida, as grandes apostas nisto e naquilo, blá, blá, blá - pouco mais são do que demagogia pura para assegurar votos, não o futuro a médio e longo prazo dos que têm a coragem, a vontade ou a impossibilidade de fazer outra coisa a não ser ficar aqui pelo interior sul do país. Resta saber até quando conseguiremos ter forças e meios para nos aguentarmos como uma espécie de derradeiro hdique contra o deserto. Como somos cada vez menos e estamos cada vez mais velhos, pode bem ser só uma questão de tempo até a barreira ceder.

domingo, 30 de maio de 2010

Uma visita ao museu

Prolegómenos
Às vezes não é fácil ocupar de modo produtivo e minimamente interessante os tempos vazios destas férias antecipadas que o serviço nacional de saúde me concedeu. Assim um destes dias, aproveitando a vinda de uma amiga que há quase um ano combate um cancro e, por isso, tem que fazer juntas médicas regularmente, decidimos aproveitar a manhã para pôr a conversa em dia, enquanto nos ocupávamos a fazer alguma coisa de que ambas gostássemos.

E o que mais gostamos de fazer quando nos juntamos é visitar exposições, museus ou algum sítio que nos interesse em particular, enquanto conversamos sobre quase tudo, e fazemos tempo para uma agradável refeição em algum sítio escolhido por ser novo, por ser diferente ou por servir boa comida.

Ora eu já tinha tentado visitar o renovado Museu do Artesanato mas fazia-o quando eu e toda a gente que trabalha tem tempo disponível e, não sei bem porquê, encontrei sempre a porta fechada (coisa que, aliás, sempre foi uma marca distintiva da cidade património mundial!). Por isso foi essa a proposta que fiz para ocuparmos o final da manhã. À entrada cobraram dois euros a cada uma e lá iniciámos a visita, com a sala literalmente por nossa conta, pois éramos as únicas visitantes e durante a hora que lá permanecemos também mais ninguém entrou.

 
Breve analepse
Visitei por diversas vezes o Museu do Artesanato, uma das quais na agradável e sábia companhia de Túlio Espanca que explicava como só ele sabia, não apenas a história do belo edifício em que está instalado, mas também das peças que constituíam o seu acervo. Desconheço as razões que levaram ao seu encerramento durante largos anos e sei menos ainda das justificações para a sua reabertura. Apenas tenho lido nos blogues locais e recebido no mail sucessivos apelos no sentido de assinar uma petição para que não volte a ser encerrado. Tinha, pois, um redobrado interesse em ir lá: para ver como estava depois de tantos anos e para o visitar uma última vez antes de fechar de novo e, se calhar, de modo definitivo. Confesso que ia, de facto, com alguma curiosidade e expectativa e que levava na memória as imagens que o tempo não tinha apagado. Era uma única sala com imponentes colunas de granito e um belo tecto em que se procurava reconstituir com objectos genuínos a vida quotidiana dos montes alentejanos. Lembro-me da reconstituição do quarto de dormir com a cama de ferro, o lavatório em ferro, a colcha de chita, etc., ou da sala de jantar com os tradicionais móveis pintados. Recordo também uma profusão de peças, em materiais diversos, algumas de grande beleza e criatividade artística, que enchiam a vasta sala.

In media res
A sala continua a ser a mesma, mas agora realçada por painéis coloridos e com um jogo de luzes que sublinham de modo harmonioso, não apenas as peças expostas, mas também a bela arquitectura da sala. Há um relativamente reduzido número de peças em exposição, algumas em modernos suportes de metal e acrílico, num conceito que é agora muito habitual em museologia. E que me parece bem num museu municipal ou nacional onde se expõem sobretudo peças de arte – quadros, esculturas, jóias, ourivesaria, etc. - que valem por si mesmas e exigem espaço à sua volta para se poderem apreciar devidamente e sem interferência de outras peças idênticas, e que têm força suficiente para caracterizar o contexto histórico-artístico em que foram criadas. Mas estas são peças de natureza bem distinta: muitas delas eram de uso quotidiano e doméstico, dão testemunho de vivências que pertencem irremediavelmente ao passado, são memórias de tempos e modos de vida hoje extintos e, para serem significativas e compreendidas, necessitam desse contexto específico em que eram criadas e utilizadas. Assim isoladas, expostas em vitrines, acompanhadas de um seco rótulo que apenas indica a data e a quem pertence(ra)m, estão como que “despidas” de sentido e, sobretudo, desprovidas de interesse para os citadinos que visitam o museu e que não possuem nem os conhecimentos, nem as vivências e muito menos as memórias que lhes permitam contextualizá-las ou sequer apreciá-las.

Dada a natureza deste museu acho que, antes, fazia mais sentido, com as peças integradas nos diversos ambientes domésticos e rurais recriados. Dou como exemplo o vaso de noite, alto, com duas asas, em barro vidrado e decorado com belos tons de verde, colocado ao lado de diversas talhas e cântaros em barro que se destinavam a refrescar a água. É no mínimo uma associação estranha e a indicação a seco contida no rótulo da peça - “vaso de noite” - não dirá muito à maioria dos visitantes. Suponho que alguns até poderão pensar que se trata de uma espécie de copo XXL para água ou algo assim do género. Achei também estranha a mistura anacrónica de peças – como é o caso das vitrines com peças em cortiça - sem que se consiga entender qual é o critério lógico subjacente a esta opção.

Uma grande parte do espaço útil da sala está destinado a exposições temporárias e, por isso, o número de peças expostas é bastante reduzido, eu diria até que é redutor face à riqueza do espólio que conhecia. No final, aparece-nos isolada e em destaque sobre uma mesa uma peça de olaria contemporânea de grandes dimensões - “a polaroid do casamento” da Oficina da Terra - a qual, assim desgarrada - não existe nenhuma outra peça deste género em toda a sala - não deixa perceber o motivo da sua presença ali já que se integra num tipo totalmente distinto de artesanato: urbano e conceptual, até com um certo carácter irónico ou mesmo caricatural, que não faz, na minha opinião, muito sentido naquele espaço.

Epílogo
A visita valeu pela qualidade e interesse de algumas das peças expostas e, sobretudo, porque agora sei do que se fala, quando se fala do Museu de Artesanato. Considero que o preço da entrada é elevado face ao que o museu tem para oferecer aos visitantes (quantidade e qualidade da exposição, não das peças em si), embora compreenda que as suas despesas de funcionamento e manutenção são de certeza bastante elevadas. Fica-se é com a infeliz ideia de que o artesanato é uma coisa assim um tanto pobrezinha e acho que isso é o mais lamentável de tudo, quando se conhece a riqueza e a diversidade, tanto do artesanato, como dos artesãos alentejanos.

Falta ali, claramente, um “golpe de asa” qualquer.

sábado, 29 de maio de 2010

Uma (im)provável conjugação de diferenças também é uma música assim

A brasileira Cibelle e o britânico Devendra Banhart cantam bossa nova em inglês, com visual vitoriano/Mary Poppins, uma canção de Caetano Veloso.

Blogodiálogo improvável: a minha Intifada

Cinco palavras Cinco Pedras
Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
e em parte resume o que penso da vida
passado o dia oito em cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
e delas vem a música precisa
para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolaçao desânimo
Antigamente quando os deuses eram grandes
eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas

Ruy Belo, Obra Poética, Vol. 1

Antigamente importava-me muito com algumas pessoas e situações. Hoje tenho apenas quatro palavras para escrever neste post. São elas: distanciamento, desconfiança, mágoa e sarcasmo. E ainda me esquecia de uma: indiferença. Ocorreu-me agora mesmo, e em parte resume o que penso cada vez mais sobre algumas situações e pessoas.

Só a ingenuidade, a necessidade de pertença, a grande carência de proximidade podem explicar a forma como às vezes somos capazes de acreditar na farsa de sentimentos e/ou relações que nada têm de nobres.

Recapitulo: distanciamento, desconfiança, mágoa, sarcasmo e indiferença. Cinco palavras. Cinco pedras. A minha intifada  pessoal contra todos os resquícios de des-ilusão que, teimosamente, ainda persistem em mim.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Causas e/ou consequências?

Hoje já não há heróis. Somos gente sem futuro, o futuro acabou há 40 anos. Até aí vivíamos um tempo de promessas, agora vivemos um tempo de paixões tristes. Onde está a cura do cancro, onde está a maravilha em que o mundo se iria transformar com o início do novo milénio?”
Romana Petri (a propósito de O Fabuloso Destino de Dagoberto Babilónio,
In Público, 28/5/2010)

Depois começou a falar das coisas que antes eram úteis, sobre as quais havia consenso, e que agora inspiravam até mais desconfiança, como os sorrisos, na década de cinquenta, por exemplo, disse ele, um sorriso abria-nos portas. Eu não sei se nos podia abrir caminhos, mas não havia dúvida que nos abria portas. Agora um sorriso inspira desconfiança. (…) Agora sabemos que por detrás de um sorriso pode ocultar-se o nosso pior inimigo. Ou, dizendo de outro modo, já não confiamos em ninguém, começando pelos que sorriem, pois sabemos que estes tentam conseguir alguma coisa de nós. No entanto, a televisão americana está cheia de sorrisos e de dentaduras cada vez mais perfeitas. Querem que depositemos a nossa confiança neles? Não. Querem fazer-nos crer que são boas pessoas, incapazes de fazer mal a alguém? Também não. Na realidade, nada querem de nós. Só querem mostrar-nos as suas dentaduras, os seus sorrisos, sem nos pedir nada em troca a não ser a nossa admiração. Admiração. Querem que olhemos para eles, é só isso. As suas dentaduras perfeitas, os seus corpos perfeitos, os seus modos perfeitos, como se eles estivessem permanentemente a desprender-se do Sol e fossem bocados de fogo, pedaços de Inferno ardente, cuja presença neste planeta obedece unicamente à necessidade de reverência.”
Roberto Bolaño, In “A Parte de Fate”, 2666, p.297

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Um Alegre Campeonato

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos aos acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a abixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. (…) A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. (…)
Não é uma existência, é uma expiação.
E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: “o País está perdido!” (…)
Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!
Junho de 1871
Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (excerto)

E mais, meu caro Eça, noticiam-se diariamente cortes orçamentais em tudo, desde a educação à saúde, passando pela cultura e afins. Há, contudo, excepções: os excelsos deputados da nação viram o seu orçamento para viagens, ajudas de custo, assessorias técnicas e outras despesas (vasto universo onde cabe quase tudo, desde flores a presentes, almoços, etc.) substancialmente aumentado. Até faz sentido, se pensarmos bem: a boa vida (vá-se lá saber porquê) sempre custou mais dinheiro do que a outra.

Também ainda não ouvi dizer que cortes irão ser feitos no orçamento milionário da federação portuguesa de futebol e, claro, na nossa estrelática selecção. A julgar pelas imagens largamente divulgadas sobre as instalações onde decorre o estágio e, sobretudo, as que já foram divulgadas sobre as que os esperam na África do Sul, dinheiro é o que não falta. Quem diria que estamos em crise!?

Mais curioso ainda é tanta gente na televisão a falar grosso sobre a excessiva despesa do estado com praticamente tudo, e nem uma palavrinha sobre este assunto. Como se aquele dinheiro não saísse também dos nossos bolsos! Só que o povo, coitado, para ver onze mânfios a dar pontapés numa bola, a cuspir para a relva, a chamar palavrões aos árbitros ou a tapar as partes pudendas com as mãos sempre que alguém tenta marcar um golo a cem metros de distância, até nem se importa nada de pagar e muito. Por isso mesmo, paga e cala-se, pois o que interessa é que vai haver futebol, muito futebol, futebol a todas as horas, futebol e mais futebol. É fartar vilanagem e o povo feliz, feliz!

A julgar pelo que aconteceu no passado 13 de Maio, quando estava tudo embevecido a acenar com lencinhos brancos ao Papa, até me arrepio só de pensar no que poderá o (des)governo maquinar neste longo período de futebol, futebol e mais futebol. É bem possível que, antes do fim do campeonato, o mundo volte a dar várias (revira)voltas.

Avizinha-se, meu caro Eça, um alegre campeonato.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

"Il speciale"

Quando vivia em Portugal era conhecido apenas como “Mourinho”. Trabalhou, obteve resultados e ganhou a notoriedade que lhe permitiu virar as costas a isto tudo. Em Inglaterra tornou-se conhecido como “the special one”. Seguiu depois para Itália onde começou por ser “il speciale”, mas depressa viria a tornar-se “il geniale”. Espanha é o seu próximo desafio e as teorias do desenvolvimento cognitivo explicam claramente a importância do conceito “desafio” para o crescimento e desenvolvimento de alguém que pretende continuar a ser o melhor.

Eu acho que José Mourinho é acima de tudo “um profissional” que sabe o que faz e o que quer e, sobretudo, sabe como, quando e o que deve fazer para conseguir alcançar os objectivos a que se propõe. Tem a sorte de poder trabalhar lá fora, em países que sabem reconhecer, apreciar, desafiar e valorizar o bom trabalho e quem o realiza.

Por cá, sempre que ouvimos falar de produtividade, de eficácia e de eficiência ficamos com a impressão de que isto é tudo uma cambada de malandros e de incompetentes. Ora não é bem assim: há em todos os sectores de actividade bons profissionais, responsáveis e cumpridores. Só que são sistematicamente menorizados, subalternizados, dispensados e desvalorizados. E em favor de quê? De oportunistas cuja máxima habilitação é o cartão do partido e a rede de conhecimentos e influências mesquinhas que lhe está associada, de escroques ao serviço de interesses espúrios e duvidosos, de gente sem escrúpulos que se serve a si mesma e se borrifa para o bem comum e para a “coisa pública”, pois quando isto rebentar tèm o (nosso) dinheiro a salvo em off-shores.

Além disso, também não convém dar visibilidade aos bons profissionais, pois assim torna-se mais óbvia a mediocridade desta gente que, quase sempre, ocupa lugares de chefia, o que implica tomar decisões importantes e com consequências (tantas vezes bem negativas para a vida de muitos de nós), nomeadamente a própria avaliação e promoção nas carreiras de quem é mais competente do que eles próprios (e aqui nem vale a pena dizer muita coisa sobre o que costuma acontecer).

Vivemos hoje num país em que o reconhecimento profissional só se consegue por duas vias: a filiação no partido do poder ou a emigração. José Mourinho escolheu a segunda. Tem a minha admiração pessoal por isso, pois não são muitos os que têm essa coragem.

Bem podem vir painéis de especialistas explicar até cairmos todos de exaustão que é preciso fazer mais isto e mais daquilo, cortar aqui e racionalizar além. Não passam de palavras vãs, sem qualquer efeito prático. è que, no essencial, ninguém quer mexer, ou seja, na mediocridade, pois essa é que garante aos incompetentes os bons lugares que ocupam e, enquanto isso não mudar, pouco mais se poderá fazer.

José Mourinho é, lá fora, a excepção que, infelizmente para todos nós, confirma a regra cá dentro: trabalha bem e  tem, por isso, o justo e merecido reconhecimento.

terça-feira, 25 de maio de 2010

A perenidade de uma voz também é uma música assim

Interpoetalidades: a efemeridade

É um dia, um dia só, a vida humana. O Homem
o que é? O que não é? Sombra num sonho
É o Homem. Mas se o deus nos ilumina
na terra brilha a vida
e é doce como o mel.”
Píndaro, excerto da Oitava Ode Pítica
(Trad. de Jorge de Sena)
Quais folhas criadas pela estação florida da primavera,
quando de súbito crescem sob os raios do sol,
assim somos nós: por um tempo de nada, nos deleita
a flor da juventude, sem conhecermos o mal ou o bem que vêm
dos deuses. Ao nosso lado estão as Keres tenebrosas,
uma, detentora da velhice medonha,
a outra, da morte. Pouco dura o fruto da juventude
- o tempo de o sol derramar a sua luz sobre a terra.”
Mimnermo, excerto (Trad. de Mª Helena da Rocha Pereira)

Imagem Google
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave
João de Deus, Campo de Flores (excerto)
“Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou.”
Fernando Pessoa (excerto)

"Nada existe duradoiro no mundo,
dizia; e por isto se rege a
nossa vida terrena, a dinastia
e as crenças que julgamos favoráveis
à verdade de sempre.
Porque
cada dia que passa vai trazendo
coisas novas e mostra a minha
necessidade no dia passado. E
a maior inquietação transforma-
-se na tranquilidade."
João Miguel Fernandes Jorge

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Andar num táxi em fúria é mesmo perigoso

Agora que tenho a carta de condução medicamente apreendida por algum tempo, fui forçada a procurar meios alternativos de transporte para a minha deslocação diária. Assim, optei pelo que me pareceu mais óbvio: o táxi. Tudo correu bem até à passada 6ª feira quando, ao fim da manhã, apanhei um junto ao hospital. O motorista tinha já alguma idade e, assim à primeira vista, pareceu-me ser ma pessoa pacífica. Só que umas dezenas de metros à frente comecei a perceber que tinha tirado conclusões precipitadas.

Forçado a seguir atrás de um veículo conduzido a uma velocidade que me pareceu adequada à sinuosidade da ruas do centro histórico, o taxista começou repentinamente a vociferar: “penteiam-se, falam ao telemóvel e os outros que se aguentem!”. Às tantas, de tão concentrado que ia a tentar fuzilar com o olhar o condutor da frente, o taxista descuidou-se e, como a rua era muitíssimo estreita, bateu com o espelho lateral no poste da sinalização rodoviária. Por sorte, dobrou, mas não quebrou. Foi neste preciso momento que comecei a ficar deveras alarmada com a expressão quase assassina no rosto do homem: o dia não devia estar a correr-lhe nada bem, ou talvez até a vida toda não lhe tivesse corrido da melhor forma. A tal ponto que achei melhor manter o silêncio, não fosse o homem ter um acesso de raiva ainda maior, agora contra a minha pessoa.

Uma vez saído da rotunda, o taxista furou o trânsito pela faixa esquerda e carregou a fundo no pedal pela via de circunvalação fora. Em escassos dois minutos, ou talvez nem isso, já estava a travar a fundo para fazer a rotunda seguinte. Colada ao banco, agarrei-me com todas as forças à pega da porta para tentar não ser projectada para fora do veículo pelo impulso da rápida desaceleração e pelo verdadeiro turbilhão de ar que entrava pelas janelas, todas completamente abertas. No troço seguinte, a situação repetiu-se e, como a extensão a percorrer era ligeiramente maior, a carro atingiu uma velocidade ainda superior. E eu já só me lembrava do anúncio do Nuno Markl para a TMN: vou usar o meu acesso de internet móvel para ficar amigo de um taxista durante a viagem, com direito a ouvir música experimental da República Checa e oferta de uma pizza, entre outros mimos. Ao princípio, quando começou a passar na televisão, eu não percebi lá muito bem a ideia. E agora, numa fracção de segundos, tinha-se feito luz no meu espírito: o objectivo era amansar a fera e salvar a vidinha, claro está! Mas, para minha aflição, não tinha comigo nem acesso de internet, nem pc, nem sequer mão disponível para fazer uma simples chamada de telemóvel a pedir socorro, pois tinha ambas engalfinhadas na tentativa de me segurar e manter dentro do carro. Felizmente, a terceira parte do trajecto, depois de contornar mais uma rotunda, era mais curta e tinha fila de trânsito, o que forçou a feroz criatura a reduzir a velocidade. Contornada a última rotunda, o homem começou então a subir a Rua da Lagoa e, logo ali, o meu destino final. Uff!! Paguei a viagem e respirei de alívio por estar sã e salva, embora com um penteado um tanto estranho!

Enquanto me dirigia a casa lá voltei ao anúncio da tmn, no qual o Nuno Markl, apesar do esforço e dos artefactos tic, acaba por não conseguir concretizar os seus objectivos. E concluí que, se nem ele conseguiu “ficar amigo do taxista em fúria” é porque esta é mesmo uma missão impossível. E, no meu caso, até muito dispensável. Por isso nos tempos mais próximos, taxis, nem para fazer anúncios da tmn (da qual, ainda por cima, não sou cliente). Converti-me logo ali ao autocarro azul: não sei se polui menos, não sei se é mais cómodo mas é, de certeza, menos assustador e bem mais barato. E aconselho o Nuno Markl a fazer o mesmo quanto antes.

domingo, 23 de maio de 2010

Os estertores do extremo mais ocidental da europa

Em 2007 Miguel Real publicou um interessante ensaio intitulado “A Morte de Portugal” no qual assume e desenvolve a tese de que temos vivido desde o séc. XVI, mais propriamente desde 1578-1580, quando nos afundámos como nação em Alcácer Quibir, enquadrados por quatro grandes complexos que nos transformaram, ao longo do tempo, naquilo que somos hoje: um país que “atingiu o seu limite de esgotamento” (p. 11). Segundo o autor, não tanto por causa do evidente decadentismo político em que estamos mergulhados, como por efeito da “aceleradíssima descristianização e desumanização ética da sociedade e de uma rapidíssima submersão social numa tecnocracia científica anónima que nivela as nações, metamorfoseando-as em regiões singulares de uma futura supranacionalidade europeia, comandada por títeres janotas que transfiguram a nobre arte da política numa cinzenta cadeia técnica de raciocínios causais...” (p. 11).

O primeiro deles é o chamado complexo viriatino ou da “origem exemplar” de Portugal configurada desde a segunda metade do séc. XVI na figura de Viriato, “herói impoluto, puro, virtuoso, soldado modelo, chefe guerreiro íntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotência do ocupante estrangeiro, conduzindo os lusitanos a vitórias sucessivas” (p.12) sobre as vastas e poderosas legiões romanas. Daqui resulta uma visão em que o português “se sente diminuído face à riqueza económica, ao grau cultural, ao nível científico e ao patamar cívico dos povos europeus do Norte, mas logo transforma a fraqueza em força e se afirma viriatinamente como eivado de uma pureza e humildade vitoriosas relativamente ao luxo decadentista europeu e americano e como penhor de valores tradicionais humanistas e íntegros que os países mais avançados, existencialmente desorientados, já perderam” (.p 17).

O segundo complexo surgiu no séc. XVII: é o vieirino ou da “nação superior”, materializado sobretudo na ideia do Quinto Império que, para nos resgatar do “assombro de nos sentirmos insignificantes [perda da independência] depois de nos termos sabido gigantes na descoberta da totalidade do mundo” (p. 13), nos tem deixado “sebastianisticamente em permanente estado inquieto de vigília, aguardando o «despertar», a «Hora» pessoana...” (p.13). São “teorias específicas de grandiosidade” (p.17) como o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes, a Idade do Espírito Santo de Agostinho da Silva ou ainda o “génio da raça” de António Sardinha e Oliveira Salazar, entre outras similares. Com este complexo Portugal postula-se “como nação superior às demais, facto desmentido no presente, mas provado no passado e anunciado providencialmente pela narrativa do seu futuro” (p.17).

O terceiro é o complexo pombalino, ou da “nação inferior” (p. 14), em “estado catastrófico” que levou o Marquês de Pombal, no séc. XVIII, a uma acção enérgica em todos os domínios da vida política, económica e social e à primeira grande aproximação do país relativamente à Europa. Das comparações feitas com outros países e povos Portugal sai claramente humilhado, obrigado a penitenciar-se, embora “desagradado de Deus ou de injustas leis históricas” (p.17), configurando-se apenas como “nação inferior, bárbara, rústica, arcaica” (idem).

O últimos destes complexos é o canibalista ou do “canibalismo cultural”. É o que, segundo o autor, tem marcado de forma mais duradoura a cultura portuguesa de 1580 (perda da independência) a 1980 (data do acordo de pré-adesão à então CEE), “passando simbolicamente pelo ano de 1890 – data do Ultimatum britânico a Portugal” (p. 15). Portugal, aqui dominado por uma “pulsão desmedida, um vigor absolutista de reconversão do outro, apostrofando as ideias deste, condenando-as como heréticas, heterodoxas, abjectas” (idem) acaba por sugá-lo e eliminá-lo. Foi o que, desde sempre, fizeram a Inquisição, a polícia de Pina Manique, os jacobinos da I República, bem como o Estado Novo e a Igreja Católica.

Como acrescenta Miguel Real, “Por efeito do ambiente educacional e social, cada português percorre na sua vida, recorrente e ciclicamente, estas quatro figurações da história e cultura pátrias” (p.16).

O autor esclarece depois o título que escolheu para este ensaio: “Assim, a «morte de Portugal» não significa que Portugal desapareça (…), mas, sim, que o Portugal que as gerações nascidas atè à década de 1960 conheceram, animado por aqueles quatro complexos, se encontra em vias de desaparecimento, transfigurado em mais uma das inúmeras regiões da Europa, governado por técnicos medíocres que, lentamente, em nome da segurança internacional, da carência de recursos naturais, ou outra justificação, preparam uma futura ditadura tecnocrática. (…) No futuro, (…) Portugal transformar-se-á em mais uma das inúmeras regiões singulares da Europa, culturalmente tão importante e exótico como a Alsácia ou a Andaluzia, guardando dentro de si, nos seus museus regionais ou nacionais, o retrato de uma velha cultura de 800 anos morta às mãos de um grupo de engenheiros e economistas sem espírito histórico, de uma tecnocracia sem rosto nem alma, para quem conta só, primeiro, a contabilidade das estatísticas e, segundo, o sentido europeu das estatísticas.

As últimas semanas, as tais que mudaram o mundo como afirma o nosso primeiro ministro para justificar o injustificável, marcadas ainda por variados e polifónicos dislates vindos de todos os quadrantes políticos e sociais, pelo assumir de posições e acções contraditórias e sempre (convenientemente) ambíguas (para deixarem em aberto a possibilidade de múltiplas interpretações e acções) demonstram que esta análise de Miguel Real acerta em cheio. A tal ponto que até me parece que o futuro enunciado nesta reflexão como possível/provável no início do próximo século, pode até estar mais próximo do que imaginamos. Digo-o assim mesmo, sem pudor nem medo e, sobretudo, sem falsos catastrofismos ou pessimismo, acreditando ainda que, de facto "Hay un paraiso" aqui na sulidão, mesmo que seja apenas por via da música:

sábado, 22 de maio de 2010

Panem et circenses

Nos tempos de um já muito decadente império romano, quando o povo começava a dar mostras de insatisfação com a governação do senado e ameaçava revoltar-se, o imperador oferecia-lhes “panem et circenses”, isto é, pão e circo, às vezes durante um mês inteiro, para acalmar os ânimos. Ora é justamente o que, cada vez mais, me parece que está a contecer por cá desde meados de maio onde os 'festivais' se sucedem em catadupa: ele foi o Papa, agora é o Rock in Rio, depois virá o Mundial e a seguir desfilarão festivais e festas um pouco por todo o país ao longo de todo o verão. Haverá de tudo para todos os gostos (por aqui a biodiversidade não está em perigo). É possível começar agora a perceber a dimensão da crise que nos atinge e como, de facto, o governo é cuidadoso nestas coisas, procurando não deixar nenhum descontente de fora. Isto tudo, é claro, porque o mundo mudou 'numa semana”, melhor 'em três semanas', não, afinal, parece que foi 'num mês'...

Se o mundo continuar a mudar a este ritmo é que não sei como vai ser. Haverá possibilidade de introduzir ainda mais festivais e diversão no calendário?

sexta-feira, 21 de maio de 2010

As marés da (des)governação

Já se percebeu que isto da governação tem ondas ou marés, algumas delas negras para os governados. 

Em certas alturas, sobretudo com eleições à vista, o primeiro ministro aparece assim em estilo líder e vocalista da banda do governo para, com grandiloquente palavreado e em fundo de música lounge e suporte multimédia, apresentar os projectos megalómanos, os grandes contratos e adjudicações, as obras monstras que apenas têm existência no papel (algumas, nem nunca de lá sairão), em ambiente de cerimónia formal como convém a estas coisas e discursos sobre como está a salvar o país.

Ultimamente, porém, surge-nos à frente dos olhos como o chefe do bando do governo, verdadeiro grupo de malfeitores que nos assalta a carteira mal dobramos a esquina, gente que, a coberto da 'salvação dos interesses do país', está disposta a tudo para manter o poder e a rede de tentáculos que o partido estendeu em todas as direcções possíveis nas grandes empresas e sectores estratégicos, onde homens de confiança fazem o que tem de ser feito para salvar algo que não se sabe muito bem o que será, mas não seguramente a economia do país. Será este o verdadero rosto dos nossos (des)governantes? Sempre achei que sim. Mas agora então ganhei mais certezas sobre o assunto. Ora vejamos: foi no dia 13 de Maio, com direito a tolerância de ponto concedido pelo próprio (des)governo e tudo, enquanto o povinho, incauto, se emocionava ou embasbacava com os banhos de multidão do papa na cova da iria, zás, tomem lá um aumento extraordinário de impostos. Desde esse dia que as sinistras figuras, e sobretudo o chefe do bando, se têm literalmente desmoronado nos sucessivos discursos que têm feito. Eles (des)dizem(-se) continuamente e nós é que vamos pagando, resignados como sempre.

A demonstrar que esta gente não está de boa fé estão as palavras de um dos principais gurus do 'bando do governo' – o da finanças – quando, ontem, declarou que “Toda esta situação gerou-me uma perplexidade. Não há lugar a confusão alguma.” Estamos tramados, e bem, mas só nos podemos queixar de termos o que merecemos. Ou não terá sido com os nossos votos que estes "punks da periferia" lá foram parar?
   

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Improvável blogodiálogo

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
- Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

José Régio, Poema do silêncio (excerto)

Sim, foi por mim que escrevi como quem grita ou como quem chora. Foi por mim que atirei palavras como quem atira pedras contra os limites da página, de dentes cerrados e mãos crispadas. Foi por mim que abri palavras para ver como eram e o que tinham escondido no seu interior. Foi por mim que usei as palavras como quem toma um banho prolongado para se sentir mais limpo por dentro. Foi por mim que escrevi todos os dias, para que as palavras fossem absorvendo a dor até deixarem apenas o vazio de tudo e de todos.

Sim, de facto, foi por mim que escrevi todos os dias. Não para me redimir, mas para me reerguer.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Mais dois formatos televisivos

Sala de espera de um hospital público com lotação mais que esgotada entre doentes, acompanhantes, bombeiros, macas e cadeiras de rodas. Muitas e desvairadas gentes de todas as idades, de muitas condições e em diversos estádios de doença. Um barulho ensurdecedor que quase não permite ouvir o sistema de som que vai debitando os números das senhas de atendimento. E enquanto se percorre lentamente a engrenagem deste autêntico souk marroquino vão-se ouvindo pedaços das mais extraordinárias conversas. Às vezes parece até que as pessoas rivalizam entre si para ver quem é que tem mais mazelas no corpo. Algo do tipo: “ai tens duas doenças? pois olha, eu cá tenho quatro”. Ou então: “fizeste o exame x, invasivo e muito doloroso? Pois eu cá já fiz dois desses e um outro que ainda é pior”.

Foi aí que me lembrei da multinacional Endemol, célebre pelos seus concursos e formatos televisivos. E parece-me que temos nestes espaços de saúde pública matéria mais do que suficiente para bater recordes de audiência nos nossos canais televisivos. Seria então mais ou menos assim: um lote de concorrentes, todos utentes regulares do serviço nacional de saúde (pré-requisito), serão chamados a narrar as suas maleitas e (des)aventuras no mundo da medicina, durante um máximo de três minutos (eu cá nem para três tenho pachorra, embora admita que, dado o interesse do assunto, podería chegar aos cinco minutos para gáudio do ávido público). Tudo isto na presença de um júri devidamente habilitado, constituído por alguns especialistas que atestariam da veracidade dos actos médicos e exames relatados, e por cidadãos comuns, desses que costumam falar nos inquéritos de rua que os telejornais passam a des-propósito de quase tudo. Aos concorrentes seria depois atribuída uma pontuação (na escala de um a dez, por exemplo). Passariam à segunda ronda apenas os que tivessem mais pontos. E assim em etapas sucessivas, até se encontrar o vencedor da noite que teria naturalmente direito a uma estadia com tudo pago num dos famosos hospitais EPE espalhados pelo país, incluindo transporte especial em ambulância do INEM e realização de um check-up completo. Claro que a ambulância estaria logo ali à porta do estúdio e as câmaras de televisão acompanhariam o percurso apoteótico do vencedor até que as portas se fechassem e o veículo arrancasse em direcção ao seu destino.

Era justamente aqui que a Endemol, num verdadeiro golpe de génio mediático, poderia introduzir mais uma sequela do seu famoso formato televisivo – o do tipo Big Brother -, o que lhe permitiria matar dois coelhos com uma só cajadada. As câmaras acompanhariam então toda a viagem do concorrente vencedor até ao hospital, bem como a sua estadia e todos os pormenores dos seus exames, com direito a debate no final da transmissão e televoto do público que, assim, poderia eleger coisas como o exame complementar de diagnóstico mais doloroso, o concorrente com as entranhas mais telegénicas, a doença mais rara, o médico mais sexy, sei lá que mais. O prémio final a sortear entre os telespectadores que votassem por telefone seria, por exemplo, um exame de rastreio de qualquer uma dessas doenças que insistem em infernizar-nos a vida.

Já estou mesmo a ver as colunas dos gráficos de audências a subir pela escala acima. E, na minha conta bancária, os chorudos direitos de autor, claro está.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O elogio do livro

(Re)descobri na estante um livrinho que alguém me ofereceu há já muitos anos por alguma daquelas ocasiões em que é costume oferecer prendas – natal ou aniversário. Chama-se O Elogio do Livro e foi escrito por Romano Guardini em 1954. Não consigo precisar se, na altura em que me foi oferecido, o cheguei a ler ou não. Certo é que não me avivou qualquer memória quando agora o reencontrei. Li-o, por isso, como se fosse a primeira vez. O tom do discurso tem o seu quê de moralista, ou não tivesse o seu autor sido sacerdote. Na primeira metade do livro avultam por isso expressões morigeradoras como “O mínimo de atenção que se deve ao livro é o cuidado de ter as mãos limpas, ao manuseá-lo, e ver ainda se também está limpo o lugar onde se pretende guardá-lo.” (p. 34); ou então “ Não se deve, por outro lado, alisar as páginas com a unha ou com o bordo da mão, para que não se formem vincos.” (p. 35). E eu pecadora me confesso, claro está.

Seriam com certeza desencorajantes não fossem algumas metáforas de grande beleza que empurram a leitura até ao fim: “O livro é, assim, um falar que se imobilizou de pé” (p. 45). Há também um interessante conceito antitético sobre a relação entre o livro e a memória: “O que é passado a escrito é, por assim dizer, memória objectiva. Está à minha disposição e pode, a todo o momento, responder ao meu apelo. Começa, então, a falar, e o que existiu outrora torna-se presente... Não devemos, porém, ocultar que a escrita funciona, também, como um instrumento de destruição da memória. Antes da história, da sabedoria e da poesia serem escritas e lidas, eram transmitidas de geração em geração por uma viva tradição oral. (...) Quem teve a oportunidade de verificar quão fiel é a memória de analfabetos dotados, sabe bem que o ganho que representa saber ler e escrever teve de ser pago com uma perda.” (p. 53), ideia que pode, hoje, ser alargada à questão da informação em rede e dos impactos que ela vai ter certamente na memória de todos nós.

Acrescento que, nos dias mais pedregosos, também nos podemos agarrar a um livro como quem faz um exorcismo. É assim mesmo que estou a atravessar os mistérios e labirintos de Benno von Archimboldi nas 1030 páginas de 2666 de Roberto Bolaño esperando, é claro, que as páginas sobrem. E este é, sem dúvida, um dos maiores elogios que posso fazer aos livros que tanto aprecio.

domingo, 16 de maio de 2010

A room with a view

Não estive por estes dias em Itália mas, como no filme de James Ivory (1985), tive direito a room with a view. Se calhar é melhor dizer with views, pois acho que fui compensada – pelo facto de não ter estado em Itália, claro! – com duas vistas distintas, porém complementares.

É que, de um lado, a janela abria directamente para as trajectórias de voo das cegonhas sobre o fundo vermelho e comprido do telhado fronteiro, já em manobras de aproximação ao seu destino final, situado do lado oposto do largo e cuja visão era acessível através de uma segunda janela. Esta permitia uma vista panorâmica para os dois altivos campanários que ladeiam a imponente fachada barroca – e é sobretudo de fachada que se trata, pois a igreja em si, apesar de muito bela, é diminuta – e enquadram uma majestosa cúpula, encimada por um lanternim cilíndríco, o qual, por sua vez, está como que coroado por pilaretes de alvenaria e ostenta uma graciosa cruz de ferro no centro. É justamente no espaço interior destes pilaretes, com o crucifixo espetado no centro – o qual será absorvido dentro de poucos anos pelo inevitável crescimento do ninho –, fazendo lembrar um daqueles toldos de colmo da praia virado ao contrário, que as cegonhas aterram no fim das suas viagens aéreas. Neste espaço que se pode descrever como apalaçado, o casal goza de uma perspectiva única, tanto sobre a paisagem urbana, como sobre os campos em volta. De vez em quando circundam o crucifixo, examinando o ninho, e ocupam largos minutos a tentar perceber qual o melhor sítio para integrar algum novo material recentemente chegado no bico de um deles: põe aqui, experimenta ali, não, afinal, fica melhor além. Depois, ficam erectas durante largos momentos, a apreciar o sol enquanto a brisa matutina lhes desalinha as penas, como que pensativas ou talvez apenas a velar pelo filhote cujo pescoço branco já é perceptível no emaranhado de paus e lama seca. É então que uma delas estica as asas e se deixa cair no vazio, batendo suavemente as asas para se elevar nas correntes ascendentes. Revezam-se ao longo de todo o dia na árdua tarefa de procurar e transportar a comida que alimenta a única cria do ninho.

Só ao fim da tarde voltam a juntar-se para descansar e apreciar os últimos raios de sol, enquanto os transeuntes passam em baixo, na rua, às centenas, alheios a este pequeno e encantador pedaço de mundo situado num plano muito superior, fora do alcance dos seus olhos.

Embora a vista para os telhados de Florença seja, sem dúvida, magnífica, para mim, esta não lhe ficou atrás em nada.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Nótulas à margem do dia

Em Julho o médico anunciou-me uma forte possibilidade que, em finais de Outubro, se tornou inevitabilidade. Depois de todo este tempo a percorrer as engrenagens de um muito avançado (pelo menos é o que eles dizem) sistema de gestão de listas de espera do SNS, estou a escassas horas de entrar no BO para fazer uma espécie de lifting pelo lado de dentro. Seguro agora a caneta virtual exactamente com o mesmo impulso que leva alguém a agarrar-se ao corrimão quando sobe uma escada, esperando que a vertigem passe depressa.

Ao fim da tarde, na estrada que me trouxe até aqui, atravessei um inesperado chuveiro primaveril. Num relance, apercebi-me de um magnificente arco-íris erguido como um portal de cores e luz a emoldurar os contrafortes da Serra d'Ossa. Interpretei a feérica aparição como um bom augúrio.

Metáforas

Escrever de frente para este espelho virtual da blogosfera é um interminável mono-diálogo no tabuleiro de xadrez das palavras. Talvez um dia consiga fazer xeque-mate...

Cartoon de P. Metello

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A força da voz humana também é uma música assim

E já que não poderei assistir ao vivo espectáculo em Lisboa...

O Simplex literário

Em Porquê ler os Clássicos? (1981) Italo Calvino distingiu duas leituras: as que se fazem na juventude e as que se fazem mais tarde, na idade adulta.

Sobre as primeiras declarou Calvino que “podem ser pouco profícuas por impaciência, distracção, e inexperiência (...) da vida”, embora possam, ao mesmo tempo, ser “formativas no sentido de dar forma às experiências futuras, fornecendo modelos, conteúdos, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: tudo coisas que continuam a agir mesmo que do livro lido na juventude se recorde pouquíssimo ou mesmo nada.” (p. 8). Quanto às segundas, muitas vezes releituras, elas permitem-nos reencontrar “essas constantes que agora já fazem parte dos nossos mecanismos internos e de que tínhamos esquecido a origem” (p. 8). Calvino diz mesmo que “deveria haver uma época na vida adulta destinada a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (...) nós certamente mudámos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.” (p. 9). Até porque, ainda segundo o autor, “um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer” (p. 9), por isso, também nada substitui a sua leitura directa e sem intermediários (resumos, críticas, leituras didácticas, etc).

Logo depois escreve Calvino que “A escola e a universidade deveriam servir para fazer compreender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais que este” (p.10). Acrescenta ainda que “a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais poderemos depois reconhecer os “nossos” clássicos” (p. 10), que serão sempre uma opção de amor e nunca um dever ou uma obrigação: é que um clássico apenas “«funciona» como tal, (...) quando estabelece uma relação pessoal com quem o ler. Se não der faísca não há nada a fazer” (p. 10).

Pensando nos currículos em vigor no nosso sistema educativo, os clássicos andam por lá, de facto, muitos deles estropiados (e é de lamentar) pela chamada “leitura de excertos”. A escola e os professores fazem o que podem – e não podem muito - face ao volume incrível de obras de apoio, de sinopses e resumos com que as editoras enchem as prateleiras de livrarias e supermercados num apelo mais que directo e óbvio, justamente, à não-leitura das obras originais. Por isso são cada vez mais frequentes nos testes, e nos próprios exames nacionais, as respostas em que é claramente perceptível que o aluno leu tudo, menos a obra original.

Não admira pois que circulem por e-mail uns «resumos» ditos de “grandes obras da literatura mundial” que apresentam coisas como esta:

Léon Tolstoi – “Guerra e Paz” (1800 páginas)
Resumo: Um rapaz não quer ir à guerra e por isso Napoleão invade Moscovo. A rapariga casa-se com outro.

Luís de Camões – “Os Lusíadas” (o nº de páginas vária segundo as edições)
Resumo: Um poeta com insónias decide chatear o Rei e contar-lhe uma história de marinheiros que, depois de alguns problemas (logos resolvidos por uma deusa porreiraça), têm o justo prémio numa ilha cheia de gajas boas.

Gustave Flaubert – “Madame Bovary” (378 páginas)
Resumo: Uma dona de casa engana o marido com o padeiro, o leiteiro, o carteiro, o homem do talho, o merceeiro e um vizinho cheio de massa. Envenena-se e morre.

William Shakespeare – “Hamlet”
Resumo: Um princípe com insónias passeia pelas muralhas do castelo quando o fantasma do pai lhe diz que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada que, entretanto, se suicida ao saber que o princípe matou o seu pai para se vingar do tio que tinha morto o pai do seu namorado e dormia com a mãe. O princípe mata o tio que dorme com a mãe depois de falar com uma caveira e morre assassinado pelo irmão da namorada, a mesma que era doida e que se tinha suicidado.

Eça de Queirós – “Os Maias” (716 páginas)
Resumo: Um homem e uma mulher conhecem-se, apaixonam-se loucamente e vivem um tórrido romance. Um belo dia descobrem que, afinal, são irmãos. O avô, ao saber do caso, morre de desgosto. Relutantes, os dois decidem por fim separar-se e viver cada um a vidinha que Deus lhe deu.

Se o objectivo for esmifrar os clássicos deve ser difícil fazer melhor, embora, para quem já os tenha lido, estes 'resumos' até possam ter a sua piada. Quem nunca os leu (aos clássicos) não me parece que fique muito motivado para o fazer e, ao mesmo tempo, também não será por aqui que, como diz Calvino no seu ensaio, os leitores terão o prazer de descobrir como um clássico´é um livro que "se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talismãs" (p. 11).

 Parece-me é que, no caso particular destes resumos dos grandes clássicos da literatura universal,  alguém tratou de aplicar o Simplex ao melhor que a literatura já produziu. E contra esta “visão” dos clássicos é que escola alguma ou livro nenhum  poderão fazer grande coisa.

domingo, 9 de maio de 2010

O mito do futebol

Um país em estado de sítio por causa do futebol! Futebol que, nos dias que vivemos, é o verdadeiro mito e cada vez mais, como definiu Fernando Pessoa, "o nada que é tudo".

Será a nossa decadência uma doença incurável?

Em Maio de 1871, Antero de Quental pronunciava no Casino Lisbonense um extenso discurso doutrinário de grande dureza que continua a manter uma actualidade feroz. Atrevo-me a dizer que ganhou mesmo acutilância ao longo destes últimos tempos. Nele começa por afirmar que “A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa História (…) Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva?” Antero conclui este intróito com o reconhecimento de que se trata de um assunto melindroso que é preciso analisar com objectividade e clareza e com um apelo à audiência: “Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.”.

No desenvolvimento posterior da sua argumentação aponta três grandes e fundamentais causas para esta nossa decadência “tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada”, relacionando-as com as três áreas fundamentais da vida social: “o pensamento, a política e o trabalho”. Quer isto dizer que uma das causas é moral e resulta da transformação do catolicismo pelo Concílio de Trento; a outra é política e está estreitamente associada ao estabelecimento do regime absolutista, enquanto a terceira é de carácter económico e se prende com aquilo que o orador designa como “as conquistas longínquas”. Juntas, trouxeram funestas consequências para os povos peninsulares, pois elas representaram “exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização.” e que foram a “liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia”, a qual apela sobretudo ao “exame” e à “consciência individual” enquanto formas privilegiadas de crescimento e progresso humanos; a “elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas” devido à sua distinta forma de pensar e agir e, finalmente, a “indústria”, “verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituinto o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista”.

Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo pela religião.”. Conclui Antero que “À influência do espírito católico, no seu pesado dogmatismo, deve ser atribuída esta indiferença universal pela filosofia, pela ciência, (…) este adormecimento sonambulesco em face da revolução do séc. XIX”.
E, mais à frente, acrescenta: Por outro lado, se o poder absoluto da monarquia acabou, persiste a inércia política das populações”: “Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase se equivalem.”

Finalmente, do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. (…) Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores.”

Afirma ainda Antero que “todos os nossos males presentes” provêm assim de três séculos de uma educação baseada em inúteis e vazias “tradições guerreiras e enfáticas”, à qual “devemos atribuir a incerteza, o desânimo, o mal-estar da nossa sociedade contemporânea”.

As propostas que Antero depois apresenta para ultrapassar esta situação de impasse multissecular, não são para aqui chamadas porque o objectivo deste texto não é propor soluções para coisa alguma e muito menos para os problemas nacionais e/ou peninsulares. Ele vem é a propósito de uma outra questão: se as causas estão identificadas há já tanto tempo, então por que motivo se mantém tão estranhamente actual e pertinente o retrato da sociedade peninsular feito por Antero há mais de um século? Não era já tempo de algumas coisas terem mudado, para melhor?

E é aqui que entram os excertos de um outro texto, também ele diagnóstico, e da autoria de Inês Pedrosa. Trata-se de uma crónica recente publicada no Expresso-Única (2/4/2010), a qual constitui para mim, mais do que uma continuidade, um alargamento do discurso proferido por Antero há mais de um século. Intitula-se “Incuráveis” e a linhas tantas escreve a sua autora que “Portugal tem o vício da dor. (…) Não se trata de tristeza, mas de um sentimento de injustiça, um eco, eternamente abafado, de revolta: ninguém nos compreende, ninguém nos dá valor, ninguém nos ama.
E nós, o que amamos? De que modo manifestamos esse amor? O que fazemos para que nos amem? A resposta habitual é que o amor não tem motivo nem justiça, as coisas são como são. Ou, pior ainda: que para se ser amado é necessário não amar – ou pelo menos é necessário não manifestar esse amor. Crescemos a ouvir isso – as meninas, por umas razões, os rapazes por outras. Todas igualmente tontas – razões de fachada, jogos de aparência que nos ensinam a jogar à defesa, pressupondo e antecipando os ataques. Esse método de educação criou um povo desconfiado – ou seja, desprovido de esperança, nos outros e em si mesmo. E supersticioso, e fatalista. Não há momento de felicidade que não nos surja ensombrado pela desgraça futura: é bom demais para ser verdade, meditamos. Essa meditação contribui para a ruína. Evitamos manifestar-nos felizes para não despertar os monstros da inveja, que são muitos e têm o sono leve: cá se vai andando, dizemos, e é o máximo que aprendemos a dizer. No dia-a-dia, este modo de ser transforma-se em agastamento e má-vontade – nas repartições públicas, nas lojas, nas filas de trânsito, em todos os lugares de interacção social.”.

Emboras as palavras sejam forçosamente distintas, as razões que lhes estão subjacentes são idênticas. Ou melhor, permanecem idênticas. Tudo permanece assim porque somos um povo "existencialmente doente” (incurável?), na medida em que, apesar do diagnóstico estar feito e há já muito tempo, apesar de todos concordarmos com ele, continuamos de facto a não mudar coisa alguma. No fundo, é como se enquanto povo ou nação nos apegássemos de forma irracional e doentia às causas que produzem a própria “dor”, ou seja, a decadência civilizacional de que há muito padecemos, e disso tirássemos uma estranha forma de comprazimento. Povo que se sabe 'doente' mas que recusa o 'tratamento', sobretudo por ignorância, por preconceito e por medo irracional do desconhecido. Exactamente como um doente mental tem preconceito em relação ao psiquiatra que o poderia ajudar e por isso não o vai consultar. Não querer assumir que se está doente para não ter que tomar as medidas necessárias são sintomas claros da própria doença existencial e civilizacional que nos afecta e que, pelos vistos, nos vai continuar a afectar. No fundo, não deixa de ser aquilo que José Gil designa, num outro ensaio, como “o medo de existir”, no qual também ecoam estas ideias e este diagnóstico.

Neste início do séc. XXI, tal como nos fins do séc. XIX, “As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história.”, como afirmava Antero. 

Assim se percebe melhor por que razão, embora as causas históricas já tenham desaparecido há muito, os seus efeitos persistem até hoje, tolhendo-nos o espírito e a razão, impedindo-nos muitas vezes de abrir os olhos para encontrar a tempo as melhores soluções, tanto na vida pessoal, como profissional, social, económica e política.

sábado, 8 de maio de 2010

Viajar também é uma música assim

Nothing at all in my head to say to you
Only the beat of the train I'm on
Nothing I've learnt all my life on the way to you
Only our love that's over and gone

 Vashti Bunyan, Train Song

Viajar: conhecer(-se) países, gentes

Durante treze dias, cinco pessoas partilharam uma viagem por mais de seis mil quilómetros. Uma espécie de círculo gigantesco com Joanesburgo como lugar de partida e ponto de chegada, atravessando paisagens ora áridas, ora luxuriantes, planas e logo a seguir montanhosas, até chegar ao mar, já com os “olhos maravilhados e exaustos de reter as paisagens” (1). São de várias nacionalidades, mas falam todos a mesma língua: o português. O pretexto para esta viagem patrocinada pelo Instituto Camões é um livro que ainda há-de ser escrito e talvez até um filme. Ambos da autoria de Ruy Duarte de Carvalho. Viagem no espaço e no tempo para compreender o que é a África hoje, e a do Sul muito em particular. Uma viagem pelos territórios da afectividade e da reflexão, num país com uma história violenta, feita sobretudo de ambição, de cobiça, de opressão e de imposição. Um país multi - racial e culturalente falando: melting pot e barril de pólvora. Sobretudo um país que tenta aprender a conviver numa paz tantas vezes podre e onde Ruy Duarte de Carvalho considera que “está em curso a produção de um mestiço universal, genética e culturalmente. O pleno mestiço do devir universal, afeiçoado pelo modelo branco expandido e imposto à escala do mundo. O que sobreviver a isto será apenas folclore, porque a diferença irá ser extinta, digerida e consumida.”. Tomo aqui a liberdade de me apropriar deste raciocínio para dizer que, no mundo ocidental branco ('branco' em termos sobretudo axiológicos, pois todos os países são hoje uma complexa mistura de etnias), o fascínio e a dependência da rede e dos media nos formata um pouco mais o espírito a cada dia que passa. Embora cada um de nós tenha o seu próprio e distinto grau individual de (in)consciência em relação a este processo, estamos tão mergulhados nele que se torna difícil perceber até que ponto - no fundo e com o sentido particular que o escritor lhe atribui - já somos todos “mestiços universais”. A globalização da informação que, na teoria, permitiria expandir e divulgar todas as formas culturais e favoreceria o respeito e a aceitação das diferenças individuais tem, afinal, contribuído sobretudo para igualizar e nivelar tudo e todos pela mesma bitola cultural e axiológica, claramente anglófila e made in USA, ou não tivessem sido eles os inventores da rede e os mentores da sua expansão à escala global.

Ruy Duarte de Carvalho sonha criar um movimento de resistência contra o sistema: “É preciso criar ilhas de resistência, e outros paradigmas que denunciem, critiquem e ofereçam alternativas ao paradigma humanista e ao progresso. É preciso dar voz a narrativas silenciadas ou ignoradas por outras dominantes. Temos de procurar teses, elites, utopias, literatura e imagens para dizer várias vezes a mesma coisa até esta se tornar simples. Tudo se joga na diferença entre a economia do equilíbrio e a economia do crescimento, que é obrigada a crescer sempre, porque se não cresce colapsa, como está a contecer agora”.

Mesmo que o mais provável seja a subida inexorável do nível das águas da globalização e da mediatização massificada e a consequente submersão destas “ilhas de resistência” é bom saber que elas existem, apesar de tudo, ainda que seja apenas no espírito de gente que se junta para fazer viagens como esta. Eles é que são, de facto, essas tais “ilhas” que formam uma espécie de barreira contra o vazio. Ou, como escreveu o próprio Ruy Duarte de Carvalho no livro “A Terceira Metade”: “enrolados (…) são os caminhos das voltas que a vida dá, como são os que no sono levam sempre aos mesmos sonhos recorrentes” e também estes que levaram cinco pessoas a percorrer juntas milhares de quilómetros enquanto falavam e discutiam sobre tudo isto.
(1) In, Ípsilon, Público, 7/5/10

E sempre a deambulação pelos trilhos da poesia...

A terra que te ofereço

1
Quando,
ansiosa,
pela primeira vez
pisares
a terra que te ofereço,
estarei presente
para auscultar,
no ar,
a viração suave do encontro
da lua que transportas
com a sólida
a materna nudez do horizonte.

Quando,
ansioso,
te vir a caminhar
no chão de minha oferta,
coloco,
brandamente,
em tuas mãos,
uma quinda de mel
colhido em tardes quentes
de irreversível
votação ao Sul.

2
Trago
para ti
em cada mão
aberta,
os frutos mais recentes
desse Outono
que te ofereço verde:
o mês mais farto de óleos
e ternura avulsa.

E dou-te a mão
para que possas
ver,
mais confiante,
a vastidão
sonora
de uma aurora
elaborada em espera
e reflectida
na rápida torrente
que se mede em cor.

3
Num mapa
desdobrado para ti,
eu marcarei
as rotas
que sei já
e quero dar-te:
o deslizar de um gesto,
a esteira fumegante
de um archote
aceso,
um tracejar
vermelho
de pés nus,
um corredor aberto
na savana,
um navegável
mar de plasma
quente.

Ruy Duarte de Carvalho, In A decisão da idade