quinta-feira, 27 de maio de 2010

Um Alegre Campeonato

O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos aos acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a abixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. (…) A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. (…)
Não é uma existência, é uma expiação.
E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: “o País está perdido!” (…)
Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!
Junho de 1871
Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre (excerto)

E mais, meu caro Eça, noticiam-se diariamente cortes orçamentais em tudo, desde a educação à saúde, passando pela cultura e afins. Há, contudo, excepções: os excelsos deputados da nação viram o seu orçamento para viagens, ajudas de custo, assessorias técnicas e outras despesas (vasto universo onde cabe quase tudo, desde flores a presentes, almoços, etc.) substancialmente aumentado. Até faz sentido, se pensarmos bem: a boa vida (vá-se lá saber porquê) sempre custou mais dinheiro do que a outra.

Também ainda não ouvi dizer que cortes irão ser feitos no orçamento milionário da federação portuguesa de futebol e, claro, na nossa estrelática selecção. A julgar pelas imagens largamente divulgadas sobre as instalações onde decorre o estágio e, sobretudo, as que já foram divulgadas sobre as que os esperam na África do Sul, dinheiro é o que não falta. Quem diria que estamos em crise!?

Mais curioso ainda é tanta gente na televisão a falar grosso sobre a excessiva despesa do estado com praticamente tudo, e nem uma palavrinha sobre este assunto. Como se aquele dinheiro não saísse também dos nossos bolsos! Só que o povo, coitado, para ver onze mânfios a dar pontapés numa bola, a cuspir para a relva, a chamar palavrões aos árbitros ou a tapar as partes pudendas com as mãos sempre que alguém tenta marcar um golo a cem metros de distância, até nem se importa nada de pagar e muito. Por isso mesmo, paga e cala-se, pois o que interessa é que vai haver futebol, muito futebol, futebol a todas as horas, futebol e mais futebol. É fartar vilanagem e o povo feliz, feliz!

A julgar pelo que aconteceu no passado 13 de Maio, quando estava tudo embevecido a acenar com lencinhos brancos ao Papa, até me arrepio só de pensar no que poderá o (des)governo maquinar neste longo período de futebol, futebol e mais futebol. É bem possível que, antes do fim do campeonato, o mundo volte a dar várias (revira)voltas.

Avizinha-se, meu caro Eça, um alegre campeonato.

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