Durante treze dias, cinco pessoas partilharam uma viagem por mais de seis mil quilómetros. Uma espécie de círculo gigantesco com Joanesburgo como lugar de partida e ponto de chegada, atravessando paisagens ora áridas, ora luxuriantes, planas e logo a seguir montanhosas, até chegar ao mar, já com os “olhos maravilhados e exaustos de reter as paisagens” (1). São de várias nacionalidades, mas falam todos a mesma língua: o português. O pretexto para esta viagem patrocinada pelo Instituto Camões é um livro que ainda há-de ser escrito e talvez até um filme. Ambos da autoria de Ruy Duarte de Carvalho. Viagem no espaço e no tempo para compreender o que é a África hoje, e a do Sul muito em particular. Uma viagem pelos territórios da afectividade e da reflexão, num país com uma história violenta, feita sobretudo de ambição, de cobiça, de opressão e de imposição. Um país multi - racial e culturalente falando: melting pot e barril de pólvora. Sobretudo um país que tenta aprender a conviver numa paz tantas vezes podre e onde Ruy Duarte de Carvalho considera que “está em curso a produção de um mestiço universal, genética e culturalmente. O pleno mestiço do devir universal, afeiçoado pelo modelo branco expandido e imposto à escala do mundo. O que sobreviver a isto será apenas folclore, porque a diferença irá ser extinta, digerida e consumida.”. Tomo aqui a liberdade de me apropriar deste raciocínio para dizer que, no mundo ocidental branco ('branco' em termos sobretudo axiológicos, pois todos os países são hoje uma complexa mistura de etnias), o fascínio e a dependência da rede e dos media nos formata um pouco mais o espírito a cada dia que passa. Embora cada um de nós tenha o seu próprio e distinto grau individual de (in)consciência em relação a este processo, estamos tão mergulhados nele que se torna difícil perceber até que ponto - no fundo e com o sentido particular que o escritor lhe atribui - já somos todos “mestiços universais”. A globalização da informação que, na teoria, permitiria expandir e divulgar todas as formas culturais e favoreceria o respeito e a aceitação das diferenças individuais tem, afinal, contribuído sobretudo para igualizar e nivelar tudo e todos pela mesma bitola cultural e axiológica, claramente anglófila e made in USA, ou não tivessem sido eles os inventores da rede e os mentores da sua expansão à escala global.
Ruy Duarte de Carvalho sonha criar um movimento de resistência contra o sistema: “É preciso criar ilhas de resistência, e outros paradigmas que denunciem, critiquem e ofereçam alternativas ao paradigma humanista e ao progresso. É preciso dar voz a narrativas silenciadas ou ignoradas por outras dominantes. Temos de procurar teses, elites, utopias, literatura e imagens para dizer várias vezes a mesma coisa até esta se tornar simples. Tudo se joga na diferença entre a economia do equilíbrio e a economia do crescimento, que é obrigada a crescer sempre, porque se não cresce colapsa, como está a contecer agora”.
Mesmo que o mais provável seja a subida inexorável do nível das águas da globalização e da mediatização massificada e a consequente submersão destas “ilhas de resistência” é bom saber que elas existem, apesar de tudo, ainda que seja apenas no espírito de gente que se junta para fazer viagens como esta. Eles é que são, de facto, essas tais “ilhas” que formam uma espécie de barreira contra o vazio. Ou, como escreveu o próprio Ruy Duarte de Carvalho no livro “A Terceira Metade”: “enrolados (…) são os caminhos das voltas que a vida dá, como são os que no sono levam sempre aos mesmos sonhos recorrentes” e também estes que levaram cinco pessoas a percorrer juntas milhares de quilómetros enquanto falavam e discutiam sobre tudo isto.
(1) In, Ípsilon, Público, 7/5/10
E sempre a deambulação pelos trilhos da poesia...
A terra que te ofereço
1
Quando,
ansiosa,
pela primeira vez
pisares
a terra que te ofereço,
estarei presente
para auscultar,
no ar,
a viração suave do encontro
da lua que transportas
com a sólida
a materna nudez do horizonte.
Quando,
ansioso,
te vir a caminhar
no chão de minha oferta,
coloco,
brandamente,
em tuas mãos,
uma quinda de mel
colhido em tardes quentes
de irreversível
votação ao Sul.
2
Trago
para ti
em cada mão
aberta,
os frutos mais recentes
desse Outono
que te ofereço verde:
o mês mais farto de óleos
e ternura avulsa.
E dou-te a mão
para que possas
ver,
mais confiante,
a vastidão
sonora
de uma aurora
elaborada em espera
e reflectida
na rápida torrente
que se mede em cor.
3
Num mapa
desdobrado para ti,
eu marcarei
as rotas
que sei já
e quero dar-te:
o deslizar de um gesto,
a esteira fumegante
de um archote
aceso,
um tracejar
vermelho
de pés nus,
um corredor aberto
na savana,
um navegável
mar de plasma
quente.
Ruy Duarte de Carvalho, In A decisão da idade
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