Em Porquê ler os Clássicos? (1981) Italo Calvino distingiu duas leituras: as que se fazem na juventude e as que se fazem mais tarde, na idade adulta.
Sobre as primeiras declarou Calvino que “podem ser pouco profícuas por impaciência, distracção, e inexperiência (...) da vida”, embora possam, ao mesmo tempo, ser “formativas no sentido de dar forma às experiências futuras, fornecendo modelos, conteúdos, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: tudo coisas que continuam a agir mesmo que do livro lido na juventude se recorde pouquíssimo ou mesmo nada.” (p. 8). Quanto às segundas, muitas vezes releituras, elas permitem-nos reencontrar “essas constantes que agora já fazem parte dos nossos mecanismos internos e de que tínhamos esquecido a origem” (p. 8). Calvino diz mesmo que “deveria haver uma época na vida adulta destinada a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (...) nós certamente mudámos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo.” (p. 9). Até porque, ainda segundo o autor, “um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer” (p. 9), por isso, também nada substitui a sua leitura directa e sem intermediários (resumos, críticas, leituras didácticas, etc).
Logo depois escreve Calvino que “A escola e a universidade deveriam servir para fazer compreender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais que este” (p.10). Acrescenta ainda que “a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo número de clássicos entre os quais poderemos depois reconhecer os “nossos” clássicos” (p. 10), que serão sempre uma opção de amor e nunca um dever ou uma obrigação: é que um clássico apenas “«funciona» como tal, (...) quando estabelece uma relação pessoal com quem o ler. Se não der faísca não há nada a fazer” (p. 10).
Pensando nos currículos em vigor no nosso sistema educativo, os clássicos andam por lá, de facto, muitos deles estropiados (e é de lamentar) pela chamada “leitura de excertos”. A escola e os professores fazem o que podem – e não podem muito - face ao volume incrível de obras de apoio, de sinopses e resumos com que as editoras enchem as prateleiras de livrarias e supermercados num apelo mais que directo e óbvio, justamente, à não-leitura das obras originais. Por isso são cada vez mais frequentes nos testes, e nos próprios exames nacionais, as respostas em que é claramente perceptível que o aluno leu tudo, menos a obra original.
Não admira pois que circulem por e-mail uns «resumos» ditos de “grandes obras da literatura mundial” que apresentam coisas como esta:
Léon Tolstoi – “Guerra e Paz” (1800 páginas)
Resumo: Um rapaz não quer ir à guerra e por isso Napoleão invade Moscovo. A rapariga casa-se com outro.
Luís de Camões – “Os Lusíadas” (o nº de páginas vária segundo as edições)
Resumo: Um poeta com insónias decide chatear o Rei e contar-lhe uma história de marinheiros que, depois de alguns problemas (logos resolvidos por uma deusa porreiraça), têm o justo prémio numa ilha cheia de gajas boas.
Gustave Flaubert – “Madame Bovary” (378 páginas)
Resumo: Uma dona de casa engana o marido com o padeiro, o leiteiro, o carteiro, o homem do talho, o merceeiro e um vizinho cheio de massa. Envenena-se e morre.
William Shakespeare – “Hamlet”
Resumo: Um princípe com insónias passeia pelas muralhas do castelo quando o fantasma do pai lhe diz que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada que, entretanto, se suicida ao saber que o princípe matou o seu pai para se vingar do tio que tinha morto o pai do seu namorado e dormia com a mãe. O princípe mata o tio que dorme com a mãe depois de falar com uma caveira e morre assassinado pelo irmão da namorada, a mesma que era doida e que se tinha suicidado.
Eça de Queirós – “Os Maias” (716 páginas)
Resumo: Um homem e uma mulher conhecem-se, apaixonam-se loucamente e vivem um tórrido romance. Um belo dia descobrem que, afinal, são irmãos. O avô, ao saber do caso, morre de desgosto. Relutantes, os dois decidem por fim separar-se e viver cada um a vidinha que Deus lhe deu.
Se o objectivo for esmifrar os clássicos deve ser difícil fazer melhor, embora, para quem já os tenha lido, estes 'resumos' até possam ter a sua piada. Quem nunca os leu (aos clássicos) não me parece que fique muito motivado para o fazer e, ao mesmo tempo, também não será por aqui que, como diz Calvino no seu ensaio, os leitores terão o prazer de descobrir como um clássico´é um livro que "se configura como equivalente do universo, tal como os antigos talismãs" (p. 11).
Parece-me é que, no caso particular destes resumos dos grandes clássicos da literatura universal, alguém tratou de aplicar o Simplex ao melhor que a literatura já produziu. E contra esta “visão” dos clássicos é que escola alguma ou livro nenhum poderão fazer grande coisa.
Parece-me é que, no caso particular destes resumos dos grandes clássicos da literatura universal, alguém tratou de aplicar o Simplex ao melhor que a literatura já produziu. E contra esta “visão” dos clássicos é que escola alguma ou livro nenhum poderão fazer grande coisa.
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