(Re)descobri na estante um livrinho que alguém me ofereceu há já muitos anos por alguma daquelas ocasiões em que é costume oferecer prendas – natal ou aniversário. Chama-se O Elogio do Livro e foi escrito por Romano Guardini em 1954. Não consigo precisar se, na altura em que me foi oferecido, o cheguei a ler ou não. Certo é que não me avivou qualquer memória quando agora o reencontrei. Li-o, por isso, como se fosse a primeira vez. O tom do discurso tem o seu quê de moralista, ou não tivesse o seu autor sido sacerdote. Na primeira metade do livro avultam por isso expressões morigeradoras como “O mínimo de atenção que se deve ao livro é o cuidado de ter as mãos limpas, ao manuseá-lo, e ver ainda se também está limpo o lugar onde se pretende guardá-lo.” (p. 34); ou então “ Não se deve, por outro lado, alisar as páginas com a unha ou com o bordo da mão, para que não se formem vincos.” (p. 35). E eu pecadora me confesso, claro está.
Seriam com certeza desencorajantes não fossem algumas metáforas de grande beleza que empurram a leitura até ao fim: “O livro é, assim, um falar que se imobilizou de pé” (p. 45). Há também um interessante conceito antitético sobre a relação entre o livro e a memória: “O que é passado a escrito é, por assim dizer, memória objectiva. Está à minha disposição e pode, a todo o momento, responder ao meu apelo. Começa, então, a falar, e o que existiu outrora torna-se presente... Não devemos, porém, ocultar que a escrita funciona, também, como um instrumento de destruição da memória. Antes da história, da sabedoria e da poesia serem escritas e lidas, eram transmitidas de geração em geração por uma viva tradição oral. (...) Quem teve a oportunidade de verificar quão fiel é a memória de analfabetos dotados, sabe bem que o ganho que representa saber ler e escrever teve de ser pago com uma perda.” (p. 53), ideia que pode, hoje, ser alargada à questão da informação em rede e dos impactos que ela vai ter certamente na memória de todos nós.
Acrescento que, nos dias mais pedregosos, também nos podemos agarrar a um livro como quem faz um exorcismo. É assim mesmo que estou a atravessar os mistérios e labirintos de Benno von Archimboldi nas 1030 páginas de 2666 de Roberto Bolaño esperando, é claro, que as páginas sobrem. E este é, sem dúvida, um dos maiores elogios que posso fazer aos livros que tanto aprecio.
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