Em 2007 Miguel Real publicou um interessante ensaio intitulado “A Morte de Portugal” no qual assume e desenvolve a tese de que temos vivido desde o séc. XVI, mais propriamente desde 1578-1580, quando nos afundámos como nação em Alcácer Quibir, enquadrados por quatro grandes complexos que nos transformaram, ao longo do tempo, naquilo que somos hoje: um país que “atingiu o seu limite de esgotamento” (p. 11). Segundo o autor, não tanto por causa do evidente decadentismo político em que estamos mergulhados, como por efeito da “aceleradíssima descristianização e desumanização ética da sociedade e de uma rapidíssima submersão social numa tecnocracia científica anónima que nivela as nações, metamorfoseando-as em regiões singulares de uma futura supranacionalidade europeia, comandada por títeres janotas que transfiguram a nobre arte da política numa cinzenta cadeia técnica de raciocínios causais...” (p. 11).
O primeiro deles é o chamado complexo viriatino ou da “origem exemplar” de Portugal configurada desde a segunda metade do séc. XVI na figura de Viriato, “herói impoluto, puro, virtuoso, soldado modelo, chefe guerreiro íntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotência do ocupante estrangeiro, conduzindo os lusitanos a vitórias sucessivas” (p.12) sobre as vastas e poderosas legiões romanas. Daqui resulta uma visão em que o português “se sente diminuído face à riqueza económica, ao grau cultural, ao nível científico e ao patamar cívico dos povos europeus do Norte, mas logo transforma a fraqueza em força e se afirma viriatinamente como eivado de uma pureza e humildade vitoriosas relativamente ao luxo decadentista europeu e americano e como penhor de valores tradicionais humanistas e íntegros que os países mais avançados, existencialmente desorientados, já perderam” (.p 17).
O segundo complexo surgiu no séc. XVII: é o vieirino ou da “nação superior”, materializado sobretudo na ideia do Quinto Império que, para nos resgatar do “assombro de nos sentirmos insignificantes [perda da independência] depois de nos termos sabido gigantes na descoberta da totalidade do mundo” (p. 13), nos tem deixado “sebastianisticamente em permanente estado inquieto de vigília, aguardando o «despertar», a «Hora» pessoana...” (p.13). São “teorias específicas de grandiosidade” (p.17) como o Saudosismo de Teixeira de Pascoaes, a Idade do Espírito Santo de Agostinho da Silva ou ainda o “génio da raça” de António Sardinha e Oliveira Salazar, entre outras similares. Com este complexo Portugal postula-se “como nação superior às demais, facto desmentido no presente, mas provado no passado e anunciado providencialmente pela narrativa do seu futuro” (p.17).
O terceiro é o complexo pombalino, ou da “nação inferior” (p. 14), em “estado catastrófico” que levou o Marquês de Pombal, no séc. XVIII, a uma acção enérgica em todos os domínios da vida política, económica e social e à primeira grande aproximação do país relativamente à Europa. Das comparações feitas com outros países e povos Portugal sai claramente humilhado, obrigado a penitenciar-se, embora “desagradado de Deus ou de injustas leis históricas” (p.17), configurando-se apenas como “nação inferior, bárbara, rústica, arcaica” (idem).
O últimos destes complexos é o canibalista ou do “canibalismo cultural”. É o que, segundo o autor, tem marcado de forma mais duradoura a cultura portuguesa de 1580 (perda da independência) a 1980 (data do acordo de pré-adesão à então CEE), “passando simbolicamente pelo ano de 1890 – data do Ultimatum britânico a Portugal” (p. 15). Portugal, aqui dominado por uma “pulsão desmedida, um vigor absolutista de reconversão do outro, apostrofando as ideias deste, condenando-as como heréticas, heterodoxas, abjectas” (idem) acaba por sugá-lo e eliminá-lo. Foi o que, desde sempre, fizeram a Inquisição, a polícia de Pina Manique, os jacobinos da I República, bem como o Estado Novo e a Igreja Católica.
Como acrescenta Miguel Real, “Por efeito do ambiente educacional e social, cada português percorre na sua vida, recorrente e ciclicamente, estas quatro figurações da história e cultura pátrias” (p.16).
O autor esclarece depois o título que escolheu para este ensaio: “Assim, a «morte de Portugal» não significa que Portugal desapareça (…), mas, sim, que o Portugal que as gerações nascidas atè à década de 1960 conheceram, animado por aqueles quatro complexos, se encontra em vias de desaparecimento, transfigurado em mais uma das inúmeras regiões da Europa, governado por técnicos medíocres que, lentamente, em nome da segurança internacional, da carência de recursos naturais, ou outra justificação, preparam uma futura ditadura tecnocrática. (…) No futuro, (…) Portugal transformar-se-á em mais uma das inúmeras regiões singulares da Europa, culturalmente tão importante e exótico como a Alsácia ou a Andaluzia, guardando dentro de si, nos seus museus regionais ou nacionais, o retrato de uma velha cultura de 800 anos morta às mãos de um grupo de engenheiros e economistas sem espírito histórico, de uma tecnocracia sem rosto nem alma, para quem conta só, primeiro, a contabilidade das estatísticas e, segundo, o sentido europeu das estatísticas.
As últimas semanas, as tais que mudaram o mundo como afirma o nosso primeiro ministro para justificar o injustificável, marcadas ainda por variados e polifónicos dislates vindos de todos os quadrantes políticos e sociais, pelo assumir de posições e acções contraditórias e sempre (convenientemente) ambíguas (para deixarem em aberto a possibilidade de múltiplas interpretações e acções) demonstram que esta análise de Miguel Real acerta em cheio. A tal ponto que até me parece que o futuro enunciado nesta reflexão como possível/provável no início do próximo século, pode até estar mais próximo do que imaginamos. Digo-o assim mesmo, sem pudor nem medo e, sobretudo, sem falsos catastrofismos ou pessimismo, acreditando ainda que, de facto "Hay un paraiso" aqui na sulidão, mesmo que seja apenas por via da música:
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