No contexto da actual situação de crise sócio-económica, todos os dias as televisões nos oferecem o exaltado frente a frente dos governantes e dos governados. Cada um apresenta as suas razões, os seus argumentos. Depois vêm os comentadores (na verdade, os 'fazedores de opinião', que é a designação que me parece mais adequada) explicar-nos o que havemos de pensar sobre governantes e governados, como se eles próprios não integrassem também, forçosamente, uma das partes interessadas na matéria. É por isso que as palavras proferidas pelo Padre António Vieira em 1654 me parecem cada vez mais actuais e pertinentes:
“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm o ofício de sal, qual será ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites. Não é tudo isto verdade?” (in, Sermão de Santo António, I)
É justamente aqui que me parece que está o nó do problema: nem o governo governa, nem os governados se deixam governar e a corrupção está por todo o lado numa sociedade onde, na verdade, o governo sobretudo desgoverna e os governados só querem governar-se. O 'sal' que seria, neste contexto, o bem comum não tem como impedir esta deterioração que todos reconhecem, tanto no contexto nacional, como internacional.
Como as palavras de Vieira demonstram, já vêm de longe as queixas e as interrogações sobre estas questões. É certo que ele criticava sobretudo os pregadores, mas nunca o seu discurso foi estanque e, por isso, as suas palavras foram sempre recebidas com incómodo tanto pelos poderosos, como pelo povo. E suponho que daqui a muito tempo continuarão a ser actuais e pertinentes. Afinal, estes são debates tão antigos como o próprio homem porque eles representam a nossa própria e contraditória natureza.
Também por isso não me parece que a resolução da tal 'crise' esteja para breve.
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