domingo, 9 de maio de 2010

Será a nossa decadência uma doença incurável?

Em Maio de 1871, Antero de Quental pronunciava no Casino Lisbonense um extenso discurso doutrinário de grande dureza que continua a manter uma actualidade feroz. Atrevo-me a dizer que ganhou mesmo acutilância ao longo destes últimos tempos. Nele começa por afirmar que “A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa História (…) Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva?” Antero conclui este intróito com o reconhecimento de que se trata de um assunto melindroso que é preciso analisar com objectividade e clareza e com um apelo à audiência: “Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.”.

No desenvolvimento posterior da sua argumentação aponta três grandes e fundamentais causas para esta nossa decadência “tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada”, relacionando-as com as três áreas fundamentais da vida social: “o pensamento, a política e o trabalho”. Quer isto dizer que uma das causas é moral e resulta da transformação do catolicismo pelo Concílio de Trento; a outra é política e está estreitamente associada ao estabelecimento do regime absolutista, enquanto a terceira é de carácter económico e se prende com aquilo que o orador designa como “as conquistas longínquas”. Juntas, trouxeram funestas consequências para os povos peninsulares, pois elas representaram “exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização.” e que foram a “liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia”, a qual apela sobretudo ao “exame” e à “consciência individual” enquanto formas privilegiadas de crescimento e progresso humanos; a “elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas” devido à sua distinta forma de pensar e agir e, finalmente, a “indústria”, “verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituinto o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista”.

Assim, enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo pela religião.”. Conclui Antero que “À influência do espírito católico, no seu pesado dogmatismo, deve ser atribuída esta indiferença universal pela filosofia, pela ciência, (…) este adormecimento sonambulesco em face da revolução do séc. XIX”.
E, mais à frente, acrescenta: Por outro lado, se o poder absoluto da monarquia acabou, persiste a inércia política das populações”: “Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase se equivalem.”

Finalmente, do espírito guerreiro da nação conquistadora, herdámos um invencível horror ao trabalho e um íntimo desprezo pela indústria. (…) Por isso as melhores indústrias nacionais estão nas mãos dos estrangeiros, que com elas se enriquecem, e se riem das nossas pretensões. Contra o trabalho manual, sobretudo, é que é universal o preconceito: parece-nos um símbolo servil! Por ele sobem as classes democráticas em todo o mundo, e se engrandecem as nações; nós preferimos ser uma aristocracia de pobres ociosos, a ser uma democracia próspera de trabalhadores.”

Afirma ainda Antero que “todos os nossos males presentes” provêm assim de três séculos de uma educação baseada em inúteis e vazias “tradições guerreiras e enfáticas”, à qual “devemos atribuir a incerteza, o desânimo, o mal-estar da nossa sociedade contemporânea”.

As propostas que Antero depois apresenta para ultrapassar esta situação de impasse multissecular, não são para aqui chamadas porque o objectivo deste texto não é propor soluções para coisa alguma e muito menos para os problemas nacionais e/ou peninsulares. Ele vem é a propósito de uma outra questão: se as causas estão identificadas há já tanto tempo, então por que motivo se mantém tão estranhamente actual e pertinente o retrato da sociedade peninsular feito por Antero há mais de um século? Não era já tempo de algumas coisas terem mudado, para melhor?

E é aqui que entram os excertos de um outro texto, também ele diagnóstico, e da autoria de Inês Pedrosa. Trata-se de uma crónica recente publicada no Expresso-Única (2/4/2010), a qual constitui para mim, mais do que uma continuidade, um alargamento do discurso proferido por Antero há mais de um século. Intitula-se “Incuráveis” e a linhas tantas escreve a sua autora que “Portugal tem o vício da dor. (…) Não se trata de tristeza, mas de um sentimento de injustiça, um eco, eternamente abafado, de revolta: ninguém nos compreende, ninguém nos dá valor, ninguém nos ama.
E nós, o que amamos? De que modo manifestamos esse amor? O que fazemos para que nos amem? A resposta habitual é que o amor não tem motivo nem justiça, as coisas são como são. Ou, pior ainda: que para se ser amado é necessário não amar – ou pelo menos é necessário não manifestar esse amor. Crescemos a ouvir isso – as meninas, por umas razões, os rapazes por outras. Todas igualmente tontas – razões de fachada, jogos de aparência que nos ensinam a jogar à defesa, pressupondo e antecipando os ataques. Esse método de educação criou um povo desconfiado – ou seja, desprovido de esperança, nos outros e em si mesmo. E supersticioso, e fatalista. Não há momento de felicidade que não nos surja ensombrado pela desgraça futura: é bom demais para ser verdade, meditamos. Essa meditação contribui para a ruína. Evitamos manifestar-nos felizes para não despertar os monstros da inveja, que são muitos e têm o sono leve: cá se vai andando, dizemos, e é o máximo que aprendemos a dizer. No dia-a-dia, este modo de ser transforma-se em agastamento e má-vontade – nas repartições públicas, nas lojas, nas filas de trânsito, em todos os lugares de interacção social.”.

Emboras as palavras sejam forçosamente distintas, as razões que lhes estão subjacentes são idênticas. Ou melhor, permanecem idênticas. Tudo permanece assim porque somos um povo "existencialmente doente” (incurável?), na medida em que, apesar do diagnóstico estar feito e há já muito tempo, apesar de todos concordarmos com ele, continuamos de facto a não mudar coisa alguma. No fundo, é como se enquanto povo ou nação nos apegássemos de forma irracional e doentia às causas que produzem a própria “dor”, ou seja, a decadência civilizacional de que há muito padecemos, e disso tirássemos uma estranha forma de comprazimento. Povo que se sabe 'doente' mas que recusa o 'tratamento', sobretudo por ignorância, por preconceito e por medo irracional do desconhecido. Exactamente como um doente mental tem preconceito em relação ao psiquiatra que o poderia ajudar e por isso não o vai consultar. Não querer assumir que se está doente para não ter que tomar as medidas necessárias são sintomas claros da própria doença existencial e civilizacional que nos afecta e que, pelos vistos, nos vai continuar a afectar. No fundo, não deixa de ser aquilo que José Gil designa, num outro ensaio, como “o medo de existir”, no qual também ecoam estas ideias e este diagnóstico.

Neste início do séc. XXI, tal como nos fins do séc. XIX, “As raízes do passado rebentam por todos os lados no nosso solo: rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos sob o peso dos erros históricos. A nossa fatalidade é a nossa história.”, como afirmava Antero. 

Assim se percebe melhor por que razão, embora as causas históricas já tenham desaparecido há muito, os seus efeitos persistem até hoje, tolhendo-nos o espírito e a razão, impedindo-nos muitas vezes de abrir os olhos para encontrar a tempo as melhores soluções, tanto na vida pessoal, como profissional, social, económica e política.

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