quarta-feira, 30 de junho de 2010

Uma voz que refresca como um banho de mar

Premonições

Ontem, no seu Bartoon diário (Público, 29/6/10), Luís Afonso, com o humor crítico e inteligente que lhe é peculiar, antevia já o previsível resultado do jogo de ontem:
E agora que o coro das vuvuzelas felizmente já se calou (de vez, espero bem) muito eu gostaria de saber quanto é que esta expedição africana dos nossos golden boys da bola e do seu respectivo e numeroso séquito de servidores e acompanhantes nos custou a todos.

Ou será que isto da contenção salarial e da despesa pública é só para alguns e o futebol é, ou melhor, continua a ser, um mundo à parte, por se ter tornado oficialmente a anestesia mental do povo?

terça-feira, 29 de junho de 2010

Aventuras culinário-radicais

Deliciei-me ontem ao fim da tarde, na Sic radical, com mais um episódio de "No reservations" de Anthony Bourdain, desta vez sobre a cozinha da Creta. O seu guia local era uma espécie de sósia do nosso grande gastrónomo alentejano Alfredo Saramago. Para além da belíssima e agreste paisagem de uma terra ainda relativamente a salvo do turismo de massas (e em alguns aspectos semelhante ao nosso Alentejo), descobri similitudes muito curiosas com as nossa tradições culinárias: é que os cretenses consomem, tal como nós, um grande número de plantas selvagens que vão colhendo nos campos de acordo com a generosidade das estações.

Anthony Bourdain é um chef americano que ganhou notoriedade com a publicação do livro "Cozinha Confidencial", o qual, se não lhe granjeou inimigos, garantiu-lhe certamente muitas inimizades, ou não tivesse como subtítulo "Aventuras no submundo da restauração". Nele, para além de muitas verdades inconvenientes sobre o mundo da restauração e da alta cozinha, como esta, por exemplo: “A área de preparação tinha sempre três gigantescas chaleiras cheias de um caldo concentrado escuro e polivalente, a fervilhar interminavelmente sob uma “jangada” de carne moída, restos de carne, ossos de galinha, carcassas de peru, pontas de legumes, peles de cenoura e cascas de ovo. Quando havia falta de comida, os cozinheiros chegavam a passar a concha por este composto a flutuar na superfície, misturavam-no com um pouco de molho de tomate e massa falecida e serviam-no a um pessoal inexplicavelmente agradecido.” (p.125).  Nele Bourdain revela-se sobretudo uma pessoa frontal, sem medo de assumir as suas fraquezas e vícios:

Quando começou a fazer programas sobre cozinha na televisão levou com ele essa atitude e aprofundou ainda mais o lado explosivo, arrogante, exigente e, muitas vezes, antipático da sua personalidade, até chegar a verdadeiro pica-miolos da produção exigindo só do bom e do melhor. Come, e bebe, com um prazer próximo da lúxuria e sem medo de cair no politicamente pouco correcto em televisão. Esse apetite voraz pela aventura culinária, já estava, aliás, bem presente no livro. Como ele próprio escreveu: “Boa comida e comer bem é uma coisa que envolve algum risco. Por exemplo, de vez em quando aparece uma ostra que me dá um desarranjo de estômago. Quer isto dizer que devo deixar de comer ostras? Nem pensar. Quanto mais exótico é o manjar mais aventuroso é o verdadeiro gourmet e maior a probabilidade de algum incómodo posterior. Não me vou negar aos prazeres de uma morcela, ou de um sashimi, ou mesmo de uma ropa vieja na tasca cubana, só porque às vezes não me sinto muito bem algumas horas depois.” (p. 75). Quando gosta é a sério e afirma-o de modo exuberante e sem subterfúgios. Quando não gosta também. Aliás, não é por acaso que o programa é antecedido e interrompido várias vezes pelo aviso de que "contém imagens que podem chocar os espectadores sensíveis". Decididamente "No Reservations" não é um formato televisivo convencional, daqueles tipo verbo de encher grelha de programação da tarde e vale bem o tempo que consumimos a vê-lo.

Ora Bourdain até já passou por Portugal numa fase inicial da sua carreira televisiva, quando ainda não tinha aprofundado tanto os dotes de ironia, cinismo e voracidade que tornam cada um destes seus "No Reservations" numa verdadeira aventura radical. Mas ficou-se pelo norte e centro do país, à conta das origens do amigo português radicado nos Estados Unidos que o guiou nesta viagem por terras lusas. Comeu do bom e bebeu do melhor, sobretudo bacalhau e vinho do Porto e, por isso, o programa foi intitulado "Cod Crazy" (pode ser visto nestas hiperligações: parte 1 e 2).

No entanto, depois de ver o programa de ontem sobre Creta e de ouvir os comentários de Bourdain acerca da comida cretense não posso deixar de imaginar qual seria a sua reacção e os seus comentários se alguém o convidasse a vir ao Alentejo para comer, entre tantas possibilidades,  uma  açorda perfumada com poejos colhidos num ribeiro, a provar umas superlativas migas de espargos bravos, a devorar uma aromática sopa de tomate com todos os seus matadores (figos incluídos), a degustar um belo cozido de grão com cardos e a fazer um tour aí por umas tascas semeadas na planície para comer uns petiscos preparados na hora, regados com uns copos de tinto, à mistura com uma sessão de espontâneo cante alentejano ao balcão. É pena que, no âmbito cultural e turístico, os municípios alentejanos se esqueçam tantas vezes de ousar pensar nestes novos meios de divulgação, tão poderosos e com retorno garantido. Ainda por cima sem terem que gastar milhões em campanhas publicitárias. Sim, que eu ontem só não fiz logo ali as malas e abalei para Creta porque sou uma pelintra, mas há por aí muita gente que até o poderia fazer se lhe apetecesse.

Mas, caro chef Bourdain, mesmo assim, quando quiser, estou disponível para lhe dar a provar os extraordinários e genuínos segredos culinários da nossa sulidão. Atrevo-me a pensar que não ficará desiludido.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Atravessar o deserto também é uma música assim...

...ou, pelo menos, quem dera que fosse.



Nota de rodapé: há um ano atrás tive o prazer de assistir ao concerto de Rabih Abou-Khalil na Arena de Évora, acompanhado pela poderosa voz do fadista Ricardo Ribeiro, que anda agora aí nos ouvidos de toda a gente com a sua "Porta do Coração". E valeu bem a pena, apesar da péssima acústica do recinto que em muito prejudicou o concerto.

Com as vírgulas não se brinca

Recebi via mail um texto muito engraçado, relativo à celebração dos 100 anos da ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Intitula-se "Sobre a Vírgula"


Vírgula pode ser uma pausa... ou não.
Não, espere.
Não espere..

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode criar heróis..
Isso só, ele resolve.
Isso, só ele resolve.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

A vírgula pode condenar ou salvar.
Não tenha clemência!
Não, tenha clemência!

Uma vírgula muda tudo.

ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.

Ainda a propósito de vírgulas, podemos sempre recordar aquela velha afirmação de que "a língua portuguesa é muito traiçoeira" e acrescentar "e a vírgula também". Que o digam os senhores deputados envolvidos no famoso "caso da vírgula" no Artigo 30.º do Código Penal, que muita tinta fez correr lá pelos idos de 98 («O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima»)!

domingo, 27 de junho de 2010

A crise e o seu cortejo de misérias

O DN de hoje traz um artigo sobre prostituição de rua. Uma das entrevistadas queixa-se a certa altura de que, por causa da crise, há menos homens/clientes e os que aparecem discutem muito mais o preço pedido. O regateio termina com frequência em chantagem: muitos clientes só aceitam pagar o preço pedido se o sexo for feito sem preservativo. E muitas vezes, pressionadas por necessidades financeiras de vária natureza, as mulheres acabam por aceitar esta espécie de roleta russa, na qual mais do que o dinheiro (segundo o jornal as verbas pagas variam entre 15 e 30 euros), está em jogo a sua própria vida.

Perante tal informação, eu diria que  estamos aqui confrontados, não com um dos aspectos da crise, mas sim com uma das muitas faces da miséria humana, tornada mais visível e despudorada pela crise que estamos a atravessar. Estamos bem longe das fantasias erótico-fílmicas que povoam por aí muita página de internet e muita cabeça leviana (ou mesmo oca), e a pisar o pavimento escorregadio da infâmia e da sordidez humanas, a que também se costuma chamar realidade: por um lado, a das mulheres que, por dinheiro, são forçadas, cada vez em maior número (o próprio DN traz diariamente várias páginas de anúncios dedicadas a isto mesmo), a vender o corpo para sobreviver;uma das prostitutas entrevistadas diz mesmo à jornalista: “São nojentos, todos. Há novos e velhos. Advogados, juízes, polícias e militares”; por outro lado, a dos homens que acham que podem comprar sexo a preço baixo (como quem compra um pacote de leite no supermercado, comparando os preços das várias marcas) e com um bónus suplementar: o de que a SIDA e afins "só acontecem aos outros".

Claro que, no fim, seremos todos nós, enquanto sociedade, a pagar – e de muitas maneiras, algumas até bastante subtis - os elevados custos das consequências desta clara degradação humana e sócio-económica.

sábado, 26 de junho de 2010

Da estupidez e do poder

Carlo Maria Cipolla escreveu, na década de 70, um pequeno ensaio “espirituoso”, como o próprio autor o designa, intitulado “As leis fundamentais da estupidez humana” que publicou e distribuiu apenas pelos amigos mais próximos. Mas o interesse suscitado pelo texto forçou o autor a considerar a sua publicação a uma escala mais alargada (Editora Texto & Grafia, 2008).

Nele Cipolla distribui os seres humanos por quatro categorias fundamentais: os ingénuos, os inteligentes, os bandidos e os estúpidos (p. 69). Mas como podemos distinguir uns dos outros? Pela forma como está exposto até parece fácil:
 “Se Fulano realiza uma acção e sofre uma perda e, ao mesmo tempo, proporciona uma vantagem a Sicrano (…): Fulano agiu como ingénuo” (p. 69).
Se Fulano “realiza uma acção da qual obtém uma vantagem e, ao mesmo tempo, também proporciona uma vantagem a Sicrano (…): Fulano agiu inteligentemente” (p. 69).
“Se Fulano realiza uma acção da qual retira uma vantagem causando uma perda a Sicrano (…): agiu como um bandido” (p. 69).
Mas se Fulano realiza uma acção da qual não retira proveito e com a qual, ainda por cima, provoca “prejuízos, frustrações e dificuldades” (p. 71) a Sicrano, sem que ninguém seja capaz de explicar racionalmente as razões que levaram Fulano a fazer essa mesma acção, então estamos perante um estúpido.

Até aqui a coisa ainda é mais ou menos consensual, apesar de haver certamente várias hipóteses de subverter a “quadratura” deste esquema, até porque a coerência não é, decididamente, a mais forte qualidade humana. As más notícias, contudo, começam a chegar logo depois.

Para Cipolla a ideia muito ocidental de que os homens são por natureza iguais e de que a existência de uns mais iguais que outros se fica a dever apenas à educação ou ao ambiente social é completamente errada. A existência de estúpidos é tão certa e inevitável como o grupo sanguíneo e deve-se apenas aos insondáveis caprichos da Mãe Natureza. Para Carlo Cipolla a experiência demonstra que, em todos as épocas e sociedades, a percentagem de estúpidos no total da população se mantém constante, da mesma forma que se mantêm constantes certos fenómenos naturais. Por isso, a estupidez é também uma prerrogativa indiscriminada de todo e qualquer grupo humano” (p. 62), imune às influências de “tempo, espaço, raça, classe ou outra qualquer variável histórica ou sociocultural” (p. 87). O autor desmistifica ainda a ideia de que o número de estúpidos numa sociedade decadente seja maior do que numa sociedade em ascensão. Ele considera que o seu número é idêntico em ambas, senda distinta a reacção social à sua existência: a sociedade decadente permite que “os membros estúpidos sejam mais activos” (p. 88), enquanto a sociedade em ascensão apresenta “também uma percentagem insolitamente elevada de indivíduos inteligentes que se esforçam por manter sob controlo” (idem) os estúpidos.

E como se estas não fossem já ideias suficientemente perturbadoras, Cipolla ainda atribui aos sexto e sétimo capítulos do seu ensaio os títulos de “Estupidez e Poder” e “O Poder da Estupidez”, respectivamente. No primeiro afirma que os danos potenciais que os estúpidos podem causar tanto nos outros indivíduos, como na comunidade ou até na própria sociedade varia em função de aspectos distintos: por um lado, o maior ou menor peso do factor genético pode fazer com que determinados indivíduos pertençam, “desde que nascem, à elite do seu grupo” (p. 77); por outro, também a própria posição de poder e autoridade que ocupam na sociedade pode potenciar os efeitos dos seus actos, uma vez que “Entre burocratas, generais, políticos, chefes de Estado e homens da Igreja” (p. 77), encontramos uma percentagem de estúpidos idêntica à dos outros estratos sociais.

A interrogação que se impõe neste ponto do texto é a de saber como é que pessoas “fundamentalmente estúpidas” (p. 77) conseguem chegar a posições de poder e de autoridade. Cipolla responde de modo muito simples: na época pré-industrial, “As origens de classe ou de casta (laicas ou eclesiásticas) foram os ingredientes sociais que permitiram um afluxo constante de pessoas estúpidas a posições de poder” (p. 78); na época industrial moderna, o papel da classe e da casta foi assumido pelos partidos políticos, pela burocracia e até pela democracia. O ensaísta afirma mesmo que “No interior de um sistema democrático, as eleições gerais são um instrumento de grande eficácia para assegurar a manutenção estável da fracção σ [símbolo usado por Cipolla para indicar o número provável de pessoas estúpidas no seio de uma população]”, até porque não podemos esquecer que uma certa percentagem dos votantes é também ela constituída por estúpidos.

E os estúpidos com “poder político, económico ou burocrático” (p. 79) tornam-se sobretudo perigosos “porque as pessoas razoáveis têm dificuldade em imaginar e compreender um comportamento estúpido” (idem). Segundo Cipolla é mais fácil perceber a lógica de um bandido (que é, grosso modo, um indivíduo que obtém um “mais” na sua conta bancária provocando um “menos” na conta do próximo), pois ela é linear e previsível, do que a de um indivíduo estúpido, pois “Não temos nenhum meio racional de prever se, quando, como e por que motivo uma pessoa estúpida vai levar por diante o seu ataque. Perante um indivíduo estúpido, estamos por completo à sua mercê.” (p. 80) Ainda com uma outra agravante: “a pessoa inteligente sabe que é inteligente; o bandido tem consciência de que é bandido; o ingénuo está penosamente compenetrado da sua falta de prevenção. Ao contrário de todas estas personagens, o estúpido não sabe que é estúpido: e isso contribui para dar maior força, incidência e eficácia à sua acção devastadora” (pp. 80-81)

Um outro aspecto que potencia ainda mais os perigos desta situação é o facto de, surpreeendentemente, até mesmo as pessoas inteligentes e os próprios bandidos terem dificuldade em “reconhecer o poder devastador e destrutivo da estupidez, sendo extremamente difícil de explicar porque é que isto acontece” (p. 83). Cipolla avança algumas hipóteses: porque se entregam a sentimentos de complacência ou de desprezo, ou porque são levados a “crer que uma pessoa estúpida só faz mal a si própria” (p. 83).

Aplicando o raciocínio do autor à realidade social obtemos mais ou menos isto: “Se todos os membros de uma sociedade fossem bandidos perfeitos, a sociedade permaneceria em condições de estagnação, mas não se verificariam grandes desastres”; “Mas quando os estúpidos metem mãos à obra, a história é outra (…) e daí resulta que toda a sociedade empobrece” (p. 83); enquanto que numa sociedade em ascensão os indivíduos inteligentes conseguem manter sob controlo os estúpidos, ao mesmo tempo que “produzem para si próprios e para os restantes membros da comunidade benefícios suficientes para fazer do progresso uma certeza” (p. 88).

E Carlo Cipolla conclui o seu ensaio definindo o que considera ser, à luz desta sua teoria, um “país em declínio”: aquele em que “a percentagem de estúpidos é sempre igual a σ; todavia, na restante população nota-se, especialmente entre os indivíduos que se encontram no poder, uma alarmante proliferação de bandidos com uma alta percentagem de estupidez (…) e, entre aqueles que não estão no poder, um aumento igualmente alarmante do número dos ingénuos (…). Uma tal mudança na composição da população dos não estúpidos reforça inevitavelmente o poder destrutivo da fracção σ dos estúpidos e leva o País à ruína.” (p. 89).

Mas o mais confrangedor é verificar diariamente como, em alguns aspectos fundamentais - governação, política, economia, finança -  apresentamos, de facto, muitas das características de uma “sociedade em decadência” no sentido que Carlo Cipolla, com tanta argúcia, atribui ao conceito. E claro que em muitas coisas, demasiadas, também me reconheço no grupo dos ingénuos.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Árvores e pássaros

Nas grandes laranjeiras perfiladas frente às janelas da escola, a chegada do verão significa o início de um ritual diariamente repetido e que se prolonga por toda a estação: à medida que o sol vai desaparecendo no horizonte, centenas de pardais chegam e aprestam-se para passar a noite no abrigo seguro que as árvores proporcionam.

São de tal modo numerosos que a generosa copa das velhas laranjeiras depressa se torna exígua para tantos hóspedes. E é então que começa a algazarra: esvoaçam continuamente, piam sem parar, lutam entre si de forma agressiva para conquistar ou assegurar lugar no ramos. Depois de várias horas, quando a noite já se instalou e parece impossível que as árvores possam acolher mais aves, começam a acalmar-se mas, de repente, a chegada aflita de um retardatário, provoca o pânico e, durante breves instantes, todos esvoaçam em simultâneo, roçando-se nas folhas verdes e soltando pios aflitos. Quando as janelas do gabinete estão abertas o ruído é quase ensurdecedor. Mas tudo termina tão repentinamente como começou e volta um silêncio que, nos instantes iniciais, quase parece estranho. A meio do serão, a paz nocturna apenas é interrompida aqui ou ali por alguns pios mais ténues, que lembram uma queixa, como se algumas aves se lamentassem por não conseguirem adormecer ou, quem sabe, da má vizinhança (talvez alguns dos pardais ressonem, perturbando o sono dos vizinhos mais próximos).

Sempre que, pela janela aberta, observo as vibrações ruidosas da folhagem escura das laranjeiras lembro-me do poema de Ruy Belo:

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de frutos dão pássaros
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores

In Obra Poética

E também de uma certa curta metragem da Pixar: For the birds

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Arqueologia das Palavras

Junho 1871

“Há muitos anos que a política em Portugal apresenta este singular estado:

Doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder... O poder não sai de uns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos.

Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião, e os dizeres de todos os outros que lá não estão – os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do País!

Os outros, os que não estão no poder, são, segundo, a sua própria opinião e os seus jornais – os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, e os interesses do País.

Mas, coisa notável! – os cinco que estão no poder fazem tudo o que podem para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do País, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se, para deixar de ser o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais e os interesses do País!

Até que enfim caem os cinco do poder, e os outros, os verdadeiros liberais, entram triunfantemente na designação herdada de esbanjadores da fazenda e ruína do País; entanto que os que caíram do poder se resignam, cheios de fel e de tédio – a vir a ser os verdadeiros liberais e os interesses do País.”

Eça de Queirós In Uma Campanha Alegre

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Post-it

Há muitos anos, certo bibliotecário com veia poética entregou-me o livro que lhe solicitei com um post-it na capa onde havia escrito, apenas pelo puro prazer de surpreender os leitores habituais que frequentavam a biblioteca e ao correr do que a inspiração lhe ditava no momento, esta frase de carácter aforístico: “A ternura é o primeiro momento do amor”.

Hoje, se tivesse que agradecer este gesto de uma delicadeza pouco habitual, em vez das palavras que disse na altura (e que, de tão banais, já nem recordo, claro), devolver-lhe-ia o livro com um post-it-réplica onde escreveria: “A ternura é o único momento do amor”.

A (in)consistência de certas palavras

Nos dias que vivemos certas palavras assemelham-se a cabaças secas: por baixo da casca endurecida estão ocas. Apenas cumprem função decorativa. Não são, pois, mais do que aparência.
Lealdade é uma dessas palavras.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Arqueologia das Palavras

É da burocracia que os partidos monarchicos sacam a fantochada espuria que os defende, que os ampara, e os constitue; e esta confraria d’espertos inuteis, que faz os parlamentos e os jornaes, os movimentos da opinião preponderante, a claque dos thronos e o esteio dos ministros devassos, esta confraria bem pressente a necessidade de se unir, como os pecegos do Demi-Monde, para occultar ao público a sua nodoa de podridão originaria. É ella a unica vaca nedia n’este miseravel paiz que tem nos ossos o rachitismo gallico de seis seculos de monarchias deprimentes. Ella a unica que manda e prepondera á nossa custa, e que para ter carruagens e palacios, festins e sedas, sancciona no parlamento os bill vergonhosissimos, consente no accrescimo dos impostos, por ter tudo a ganhar na partilha dos dinheiros do povo – do povo que ainda se não convenceu que os gatunos agora andam fardados!”

Fialho d’Almeida In Vida Ironica – Jornal d’um Vagabundo, 3ª ed. 1919, p.15

Sim, só eu sei

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Solstício de Junho

Uma noite assim, tão breve, não chega para mitigar a sede da pele já tatuada pelo sol de junho, pois este solstício de verão traz consigo a promessa da plenitude mas não a da saciedade. Além de que, colher os frutos do que ainda não foi plantado, mais do que paradoxal, parece-me improvável.

Porém, se conseguirmos sobreviver à inércia da espera, quando o sol atingir o seu ponto solsticial de dezembro poderemos testemunhar o mágico ritual em que a escuridão nocturna cumpre a estreme promessa da sementeira e da renovação. Aguardemos assim, sem subterfúgios, por esse solstício de inverno para, insones, atravessarmos sem pressa a grande noite até que a manhã límpida irrompa, ansiosa por começar o novo ciclo. Afinal, é de atirar sementes à terra que precisamos, mesmo sem a certeza de que elas consigam entranhar as raízes neste solo agreste.

Cultura vs. Civilização

"O (...) gesto (...) de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território, é o processo de CIVILIZAÇÃO.
O (...) gesto (...) de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA.
É mais difícil a passagem de civilização para cultura do que a formação de civilização.
A civilização é um fenómeno colectivo.
A cultura é um fenómeno individual.
Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.
(...)
Justaposição disto mesmo a Portugal: uma civilização sem cultura.
As excepções, inclusive as geniais, não fazem senão confirmá-lo."

José de Almada Negreiros In «Sudoeste» nº 1, Junho de 1935

Na verdade, a forma como certas palavras, ideias e conceitos perduram intocados na sua pertinência ao longo de décadas, nunca deixa de me espantar.

Uma história que um dia José Saramago inventou...

domingo, 20 de junho de 2010

Inovação: sinuoso vocábulo

Três investigadores norte-americanos – Jeffrey Dyer, Clayton Christensen e Hal Gregersen – estudaram alguns dos empresários e executivos mais bem sucedidos do mundo – Steve Jobs da Apple, Pierre Omidyar da eBay, Jeff Bezos da Amazon entre muitos outros – para perceber o que é que os transformou e às suas empresas em líderes de inovação e de mercado.

No final desse estudo, a que deram o título de “O ADN do Inovador” descobriram que todos tinham em comum certos traços de personalidade que se resumem em cinco palavras: associar, questionar, observar, experimentar, estabelecer relações com o outro. Mas a descoberta mais interessante é que essas cinco qualidades de pensamento/acção dos líderes da inovação mundial se assemelham, e muito, à forma de raciocinar e de agir de uma criança de quatro anos. Estes empresários inovadores, ou mesmo excêntricos, observam o mundo colocando-se de fora, são capazes de associar ideias ou temas aparentemente díspares e sem sentido; demonstram uma curiosidade ilimitada e não têm medo de fazer perguntas, mesmo que, para a generalidade dos adultos, às vezes elas pareçam não fazer sentido. Também costumam fazer cursos ou praticar coisas aparentemente desnecessárias ou nos antípodas das funções que exercem. Só que fazem tudo isto com uma intenção, e isso é o que os distingue das verdadeiras crianças de quatro anos.

Em suma, são pessoas capazes de pensar de forma criativa a partir da observação atenta dos outros e dos mundo que os rodeia. São pessoas que detectam novas possibilidades, novas maneiras de fazer e de ver as coisas e que facilmente estabelecem relações sociais muito diversificadas (“networking”) que lhes abrem perspectivas também elas diferentes e diferenciadas. Em muitos destes homens e mulheres a capacidade de inovar é inata, mas muitos deles desenvolveram-na a partir da experiência e da aprendizagem.

Assim, os autores do estudo concluiram que também é possível aprender a ser inovador e criativo. Curiosamente, descobriram até que a maior parte dos grandes empresários americanos frequentaram escolas Montessori, o que não será, certamente, uma coincidência. Concluiram ainda que o estímulo e apoio dos pais foi muito importante também. Hal Gregersen diz mesmo que a boa pergunta a fazer a uma criança quando chega da escola não é “o que é que aprendeste hoje? ou “o que é que fizeste hoje?” e sim “que perguntas fizeste hoje na escola?” ou “que perguntas não tiveste possibilidade de fazer?”. Mas Gregersen sublinha ainda que não adianta pôr as crianças a ter ideias inovadoras se, depois, ao nível político e económico, não forem criadas as oportunidades estruturais e disponibilizados os capitais de risco necessários para as pôr em prática.

Até pode ser que sim, porém entre nós não só não é assim, como não se perspectivam grandes mudanças no horizonte temporal mais próximo. Não apenas porque não há dinheiro para isso, mas também porque, mesmo que o houvesse, mudar as mentalidades é sempre o mais difícil. Alterar os currículos escolares, não. Na verdade, esses até são substituídos com alguma frequência, embora nem sempre se consiga perceber muito bem porquê e, sobretudo, para quê. E, aliás, o cúmulo de permissividade e de indigência mental a que a escola portuguesa chegou bem o demonstram (e isto nada tem a ver com as estatísticas, pois essas fazem parte de uma outra história, bem contada e melhor inventada). E também porque, na actual conjuntura económica global, as oportunidades são cada vez menos e cada vez para um número mais reduzido de indivíduos e de empresas, como também já se percebeu. Portanto, se não mudámos quando o mundo era mais fácil, e talvez até mais maleável, também não me parece que agora, quando esse mesmo mundo vive mergulhado na incerteza e na hostilidade de uma competitividade económica implacável, o consigamos fazer. O mais provável é que continuemos a navegar nas turvas águas da pequenez que nos caracteriza desde há várias décadas, num mundo que, também ele, está cada vez mais selvagem e mais hipócrita.

sábado, 19 de junho de 2010

Embalar o desconforto também é uma música assim

O poder da imagem

O húngaro László Moholy-Nagy (1895-1946) cultivou, nas primeiras décadas do séc. XX, o ideal modernista de artista total - por oposição ao ideal de artista genial, atormentado, tão característico do século anterior; trabalhou incansavelmente para criar uma arte nova, de vanguarda, capaz de representar e de exprimir um mundo também ele novo, ainda sob o fascínio poderoso das grandes máquinas da Revolução Industrial, muito à semelhança do ideário de figuras como Almada Negreiros em Portugal. Moholy-Nagy foi cineasta, cenógrafo, escultor e professor, mas sentia um especial fascínio pela fotografia.

E um dia escreveu que “Os analfabetos do futuro não serão apenas aqueles que ignorarem a linguagem escrita, mas também todos os que ignorarem o uso de máquina fotográfica”. E o futuro foi-lhe dando razão à medida que foi acontecendo. As imagens, perpetuadas em película e agora mais recentemente em suporte digital, não representam apenas a história do mundo e dos homens. Muitas delas, só por si, têm feito história e algumas têm sido até capazes  de mudar a própria história.
 

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Histórias de gatos

O mundo está cheio de histórias reais de gatos com dons extraordinários que fazem mais felizes os humanos que com eles têm o privilégio de conviver. Assim, de repente, estou a recordar-me de Nora, a gata que gosta de fazer duetos ao piano com os alunos da dona e com a própria dona e, sobretudo, de Óscar, um gato adoptado por um lar de idosos que revelou um extraordinário dom: consegue “adivinhar” quem vai morrer, fazendo questão de acompanhar os moribundos até ao fim. A tal ponto é certeira esta sua capacidade que já foi alvo de um estudo que acabou publicado em livro e objecto de um documentário realizado pelo Discovery Channel. Mas há tantas outras pequenas histórias que, embora menos espectaculares, não deixam de ser também curiosas.

É o caso do Zéquinha, um gato eborense de pelagem amarela e branca, já com uma respeitável idade e que é uma espécie de vedeta local. Partilha a casa com dois ou três gatos de diversa proveniência mas, há já muitos anos, decidiu entrar para a vida activa. Todos os dias, faça chuva ou sol, sai de casa e está pontualmente à porta da loja situada em frente, pronto para iniciar mais um dia de trabalho. Com a cumplicidade da proprietária, também ela fã de gatos, Zéquinha tornou-se animador socio-cultural da loja. A sua função parece simples, mas tem que se lhe diga: consiste em “estar”, acordado ou a dormir, em vários pontos estratégicos da loja, para apanhar de surpresa os clientes com a sua mansidão e bonomia naturais. Hoje, por exemplo, decidiu servir de chamariz para os chinelos (quantos terá conseguido vender?).

Évora, 18/6/2010

E é difícil resistir a tanto charme: os clientes que lá entram pela primeira vez, surpreendidos com a presença do volumoso gato, logo metem conversa com a simpática dona da loja, interessam-se em conhecer a história do bichano, às vezes chegam a perguntar se está ali para ser adoptado, tiram fotografias. Quem já é cliente habitual e conhece a história chega mesmo a entrar de propósito para lhe fazer festas.

A loja de utilidades, bugigangas e afins ganha animação e, provavelmente, factura um pouco mais com tanta gente a entrar. O Zéquinha ganha muitos, muitos mimos e vive feliz e relaxado. Até os clientes ganham, pois saem da loja bem mais divertidos e animados. De facto, todos ganham qualquer coisa nesta história que demonstra bem como, com um pouco de boa vontade, pessoas e animais domésticos podem conviver de forma pacífica.

Epigrama e não epitáfio

Este é "o ano da morte de José Saramago". Pelo que foi e pelo que escreveu merece um epigrama, bem mais do que um epitáfio, até porque é sempre melhor celebrar a vida. Proponho uns versos de Ricardo Reis:

"Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive."

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Com palavras também se pinta

Como fazia Arthur Rimbaud...

Voyelles

A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes :
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

Golfes d'ombre; E, candeurs des vapeurs et des tentes,
Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lêvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides
Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux ;

O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,
Silences traversés des Mondes et des Anges :
- O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux !

e João Vieira...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Idealizar a paisagem também é uma música assim

Da complexidade e ambiguidade da escrita

Numa entrevista concedida ao jornalista João Bonifácio do Ípsilon/Público (11/6/2010) a propósito do lançamento do seu último livro, com o título de “O Regresso do Hooligan”, o romeno Norman Manea deu aquela que, para mim, é uma das melhores e mais certeiras definições do que é o romance contemporâneo: “Um romance é uma história adiada: atrasa-se a história o mais que se pode. Porque uma história, na verdade, são duas frases. E só com tempo podemos ver como ela é maior do que parece.” E acrescentou: “Um computador não pode escrever um romance, porque não sabe ser vago e uma grande parte do mérito de um romance é saber ser vago, não ser sempre directo.”

Palavras certeiras, estas. Por isso, às vezes encontro divagações e meandros tão bem conseguidos que valem mais do que a própria história e, noutras, o romance cria expectativas iniciais que depois são frustradas porque, justamente, o autor não soube ou não foi capaz de “ser vago” à altura das expectativas que tinha criado. São os livros cuja leitura inicio mas não sou capaz de concluir.

Sobre a técnica narrativa Manea acrescenta: “Não se pode planear tudo num romance, sabe? Porque os detalhes aparecem da própria vida interior do romance. Começa-se de A para B, mas depois vai-se para F e para B e depois para Z.” Isto porque “a própria vida é assim, pelo que a vida dos textos também acaba por ter de ser assim: nada obedece a uma lógica linear.”

Não consegui deixar de pensar nos produtores de best-sellers que inundam todos os anos o mercado com um novo romance nascido de um plano detalhado e seguido à risca, pois numa “receita” que funciona não há espaço para o improviso. Seria curioso ouvir como é que alguns deles refutariam este ponto de vista...

Disse também que o livro (refere-se a “O Regresso do Hooligan”) “não é uma memória cronológica” porque, tal como Proust, também pensa que “a única memória autêntica é involuntária”. Segundo Manea, “Uma memória voluntária é uma memória-pré-estabelecida” e, na vida, “somos atravessados por memórias que não controlamos, em momentos que não controlamos”.

Nas suas aulas de literatura, Manea trabalha a obra de um outro autor judeu que, como ele, viveu o Holocausto – Primo Levi. Esse trabalho tem-lhe permitido sobretudo perceber a dificuldade que os alunos, e os seres humanos em geral, têm “em apreender a ambiguidade da vida”. Concluiu até que “As pessoas procuram simplificar, têm dificuldade em aceitar que é tudo muito mais complexo que isso. O que quero dizer é isto: mesmo numa situação extrema, de vida ou morte, em que as opções são diminutas, eu defendo que a vida é complicada e ambígua.”

Neste passo do texto recordei-me, claro está, do poema de Robert Frost "The road not taken", cujos versos finais também abordam esta questão da complexidade, mesmo perante algo tão aparentemente simples como uma bifurcação no caminho que atravessa o bosque: "Two roads diverged in a wood, and I -/ I took the one less traveled by,/ And that has made all the difference."

Palavras de um escritor que pensa (como eu, neste caso). Eu até vou mais longe: mais do que dificuldade, as pessoas têm medo da complexidade que se esconde em cada um de nós, como da que se esconde na verdadeira literatura. Preferem visões simplistas, a “preto e branco” que não obrigam a um esforço de análise e de compreensão. A sociedade da informação vive “à superfície” das coisas e das pessoas porque só assim consegue acompanhar o ritmo frenético dessa mesma informação que chega de todos os lados, ainda que seja quase sempre redundante ou acessória. É uma sociedade sem tempo para pensar. Também sem grande vontade de o fazer, pois rege-se sobretudo pela lei do menor esforço.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Um país em falência?

Muito se tem noticiado, analisado e comentado nestes últimos dias sobre o crescente número de empresas em situação de falência. No entanto, há mais do que empresas a falir. Praticamente todo o interior do país está em processo de falência humana e social. Processo lento, silencioso, porém inexorável.

Quando, há já quase quatro décadas, os vapores da revolução de 74 ainda se cheiravam no ar, a ideia era dotar todas as aldeias, vilas e pequenas cidades do interior com os serviços públicos essenciais: água, luz, saneamento, transportes, estradas, serviços de saúde e escolas. Procedeu-se também à desmultiplicação de um conjunto de serviços que, não sendo indispensáveis, eram relevantes para a chamada “qualidade de vida” das populações: correios, finanças, bancos, farmácias ou postos de medicamentos.

Hoje verifica-se que, nem mesmo os chamados serviços básicos, chegaram a todo o lado: a luz eléctrica está praticamente generalizada (mas ainda há quem não tenha), a água canalizada chegou a muitos sítios, mas o saneamento, por exemplo, já deixou muito a desejar e continua a não existir em numerosas aldeias espalhadas pelo interior, de norte a sul do país. A crescente desertificação – numa população que também nunca foi muito numerosa - é o que explica, em muitos desses sítios, o desinvestimento na criação dessas valências, uma vez que, ao longo de todo este tempo, se verificou um outro fenómeno paralelo, porém, muito relevante para o que está a acontecer agora: o êxodo da população mais jovem para a faixa litoral em busca dos empregos que nunca existiram, ou foram deixando de existir no interior. Esta perda da população mais jovem tem consolidado o crescimento de megacidades no litoral, essas sim, bem dotadas de equipamentos e com serviços de qualidade.

Desde a década de 90 que nos habituámos aos anúncios governamentais que, em nome da racionalização dos recursos humanos e financeiros, vão dando conta do encerramento dos serviços mais diversos (alguns deles só conquistados graças, justamente, à democracia): comboios; postos de correio; finanças e outras repartições públicas; serviços de saúde, nomeadamente urgências e maternidades; postos de polícia/guarda etc. Embora os protestos das populações sejam reconhecidos como justos e os seus contra-argumentos se revelem muitas vezes razoáveis, a verdade é que o processo de encerramento progressivo do interior do país tem sido inexorável.

O fecho das escolas, que vai já na segunda leva, é disso paradigmático. Em muitas aldeias do interior elas representam o único sinal possível de esperança da comunidade. Elas são sobretudo um símbolo de continuidade, assim uma espécie de faz-de-conta para enganar o vazio (tão legítima como outra coisa qualquer). Claro está que, lá no fundo, todos sabem que, sendo a agricultura de subsistência a única possibilidade que estas comunidades oferecem aos jovens para sobreviverem, é só uma questão de tempo até que todos acabem por sair em busca de empregos no litoral ou no estrangeiro. Muito poucos se poderão “dar ao luxo” de ficar pela terra em que nasceram se quiserem ter condições mínimas de vida. Até porque o desinvestimento e o encerramento de serviços as torna ainda menos atractivas, sobretudo para uma população mais jovem com vivências e anseios muitos distintos dos seus avós e pais, por exemplo.

Encerradas as escolas, transportados os alunos para os Centros Escolares (a própria designação já diz quase tudo sobre o que lá se pretende fazer), tem início um processo de socialização, uniformização e aculturação das crianças a uma vivência sobretudo urbana - e agora também global – que rapidamente as fará esquecer as tradições e laços sociais e identitários das suas comunidades de origem. Entretanto, na aldeia, ficam apenas os velhos. Enquanto espaço físico e social a aldeia existirá enquanto os velhos sobreviverem. O único investimento a que obrigam, por força das circunstâncias, é à criação de centros de dia e de lares que darão emprego aos pais e mães dos meninos transportados para os tais centros escolares.

E o que já não falta por aí são aldeias-fantasma, embora haja também alguns epifenómenos: pequenas comunidades que se revitalizaram em torno de uma pequena indústria ou negócio criado por algum emigrante que regressou e investiu na terra onde nasceu, ou de um projecto de turismo criado por alguém que abandonou voluntariamente a grande cidade porque escolheu viver de outra forma. Seja como for, não chega para fazer a diferença, não tem força para travar o fenómeno do despovoamento e da desertificação acelerada que estamos a viver. Seriam necessárias outras opções políticas e económicas, outras medidas e outra antevisão do futuro.

Também não consigo perceber muito bem como é que andamos há já tantos anos a encerrar paulatinamente o interior do país em nome da racionalização e da poupança dos escassos recursos das finanças públicas e nos vemos agora enfiados nesta “crise” que nos obriga a ainda maiores sacrifícios. Cada vez mais acho toda esta história mal contada. Sobretudo acho que andamos muito mal governados, nós e o dinheiro dos nossos impostos. Às vezes interrogo-me: e quando já não houver mais nada para fechar no interior do país? Fechamos o próprio país? (não me admirava muito que já houvesse por aí algum discreto grupo de assessores a ser pago para "estudar" o assunto).

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Uma certa ordenação das coisas

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois
Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois

Mário Quintana

domingo, 13 de junho de 2010

Pequeno achado

Hoje de tarde, ao observar a montra de uma loja aqui perto de casa descobri este pequeno anúncio que promete "música" com esquentadores e canalizações, como se pode confirmar pela imagem:

(Évora, 13/6/2010)

Lembrei-me de uma notícia recente sobre a vinda do compositor Marcus Lindberg à Casa da Música para executar "Kraft", uma obra inspirada no movimento punk e que recorre aos pedaços de sucata como instrumentos de percussão, devidamente acompanhados por uma orquestra clássica. Mal sabe o compositor e maestro finlandês que, por óbvio desconhecimento ortográfico, alguém anda aqui pela sulidão a "fazer música" com instrumentos pouco convencionais...

Ironias...

Depois do “fogo amigo” que, com alguma frequência, ceifa vidas lá para os lados do Iraque e do Afeganistão, temos agora notícias diárias da progressão da gigantesca mancha de “petróleo amigo” da British Petroleum (BP) que alastra pelo Golfo do México. Ou, como referiu Dean Blanchard, dono da maior lota de camarão dos Estados Unidos e terceira maior do mundo, situada em Grand Isle, no delta do Mississipi: “A vida toda pensei que iam ser os russos ou os chineses que nos iam matar; afinal são os ingleses...”.

Pois é, com amigos destes, quem é que precisa de tantos inimigos aí pelo mundo fora?

sábado, 12 de junho de 2010

Os problemas da migração, com e ou com i

Numa interessante análise a que deu o título de “Os problemas de Portugal – Mudar de rumo” (Ed. Colibri, Dez. 2009), Vitorino Magalhães Godinho ao questionar a forma como as organizações internacionais – ONU, UNESCO, FMI, Organização Mundial do Comércio – têm reagido às brutais mudanças de paradigma ocorridas neste início do séc. XXI, tanto ao nível económico-financeiro como poítico-estratégico, escreve que: “Não é aceitável que certos países se transformem em fábricas de mão-de-obra barata e sem garantias sociais. Apanhada no vórtice da emigração, essa fôrça de trabalho poderá melhorar certos círculos no seu país de origem graças às remessas dos ganhos, mas a sua ausência reduz as possibilidades de desenvolvimento aí; e nos países de acolhimento a sua presença contribui para baixar o nível de salários; muitas vezes, apegados a radicionais modos de viver, pretendem impô-los às comunidades que os recebem, não enriquecendo assim a cultura, antes gerando conflitos insanáveis. É nos países de origem que devem encontrar os meios de viver e de usufruirem da cultura, bem como disporem da necessária assistência médica. A emigração, se com retorno, pode contribuir para formar trabalhadores especializados. Tem que se pôr termo ao dumping que, utlizando a mão-de-obra barata e sem direitos, asfixia as indústrias dos países onde o operário é bem pago e tem a sua dignidade assegurada. Cada estado tem o direito de defender os seus naturais. Mas os movimentos migratórios põem outro problema grave. O recrutamento de mão-de-obra, o transporte para os países de destino, e depois o desenrolar do viver quotidiano estão em grande parte sob a alçada de poderosas máfias, que não só exploram violentamente os emigrantes comolevam à formação de bolsas de alta criminalidade, associada a tráfico de armas, de prostituição e de drogas. Impõe-se que os governos dos países de origem e os de acolhimento cooperem em acção vigorosa de desmantelamento de tais bandos e protecção dos trabalhadores e suas famílias.” (p. 11-12)

Visão lúcida e certeira do problema para o qual quem de direito – governo, autoridades, instituições, todos nós - ainda não pensou muito a sério. Embora os movimentos imigratórios não passam despercebidos pois a grandeza dos números não o permite - veja-se agora o caso dos imigrantes brasileiros (ouve-se aliás falar português do Brasil em todo o lado), dos países de leste (já bastante menos numerosos do que há meia dúzia de anos atrás) e da China (por via do comércio) -, na verdade esse tema nunca foi discutido, nem estudado ou analisado a fundo. Tendo em conta que precisamos desses imigrantes para trabalhar, sobretudo para fazerem os trabalhos que os portugueses já não querem fazer (cá, porque lá fora fazem-nos), e que estamos com claros problemas de envelhecimento populacional, seria bom que se começasse desde já a pensar como é que vamos lidar com o(s) problema(s) que venham a surgir no futuro.

Entretanto, o mais irónico é que Portugal sempre foi e continua a ser um país de emigração. Veja-se como a actual crise gerou uma nova vaga de emigrantes, sobretudo entre os jovens, mesmo bastante qualificados. Contudo, ainda não vi ninguém preocupado em perceber quais poderão ser as consequências desta sangria permanente  de população.Também por causa da sua condição de emigrante, Portugal até poderia dar bons exemplos nesta matéria ao nível da Europa mas, como sempre, remete-se ao silêncio e ao conformismo relativamente aos 'patrões' da UE. Nesta, como em tantas outras situações, à medida que os problemas forem aparecendo, iremos improvisando, até em termos legislativos, como é, aliás, habitual.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

O dia da Natalidade

Assisti ontem, enquanto tive paciência para isso, às cerimónias de comemoração do 10 de Junho, Dia de Portugal, etc e tal: as grandes figuras do Estado todas com um ar muito sério e compenetrado, alguns até com cara de quem estava a fazer um frete daqueles, aqui se destacando claramente o primeiro-ministro.

Contudo, acho que faz cada vez mais sentido pensar na criação de um novo feriado nacional (ai o PIB!): o Dia da Natalidade. É que, no ano passado, nasceram em Portugal menos de cem mil crianças e a taxa de mortalidade (9,8%) superou a de natalidade (9,4%).

Dado que a taxa de natalidade também se pode analisar como um indicador da situação económica e social dos países, e tendo em conta também a grave crise que estamos a atravessar, não é de prever que o índice de fecundidade possa subir significativamente nos próximos anos. Mesmo que se tomassem já agora grandes medidas políticas de incentivo à natalidade, os seus efeitos, forçosamente, só se fariam sentir a médio e longo prazo. E, em Portugal, na verdade, muito pouco tem sido feito para prevenir ou melhorar a situação demográfica do país, por isso, a situação só se poderá agravar nos próximos anos.

Somos já, verdadeiramente, um “país de velhos” uma vez que, por cada 100 jovens, existem 118 idosos. Segundo os especialistas somos até um país duplamente “velho”, porque nascem menos crianças e porque a esperança de vida à nascença é cada vez maior. E quando pensamos que a taxa de activos foi, também em 2009, de apenas 66,9%, a situação ganha contornos bastante mais graves ainda, com consequências para o futuro desses mesmos activos.Teremos forçosamente que “importar” população em idade activa e fértil, se quisermos manter a sustentabilidade demográfica e social do país.

É que, por este andar, muito em breve não falaremos apenas do número crescente de espécies animais e vegetais em risco de extinção, começaremos também a elaborar a listagem de países que correm idêntico risco. É por isso que celebrar o Dia da Natalidade, de preferência em data anterior ao 10 de Junho – Dia de Portugal –, começa a fazer todo o sentido. É que, sem população, não há nação. E já estou mesmo a imaginar milhares de pessoas num grande espaço aberto, os nossos (des)governantes com sorrisos extáticos a acenar, a dar beijinhos em centenas de crianças, a cumprimentar os babosos pais e mais os felizes avós, a fazer 'cutchi-cutchi' no queixo dos bébés recém-nascidos, a distribuir generosas ofertas patrocinadas por múltiplas empresas - cheques, fraldas, brinquedos, vales de compras para leite em pó, etc. etc. - palhaços, coloridos balões por todo o lado, as televisões todas em directo, frenéticas a fazerem entrevistas  e com comentadores em estúdio a opinar sobre o que se está a passar... Enfim, uma festa que faz tanto sentido como qualquer uma dessas que se realizam por esse país fora, parece-me.

E já agora, como se avizinham, também por estes dias, os pirosos “casamentos de Santo António” os quais, na sua grande maioria, devem terminar em divórcio, talvez fosse mais útil transformá-los mas é em “baptizados de Santo António”.

(Estatísticas INE - DN, 10/6/2010)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Gaivotas sobre o Alqueva

Talvez cansadas da agitação de Lisboa algumas gaivotas sobrevoam agora o Alqueva trazendo a maresia no pio estridente que atravessa o ar da tarde. Cruzam os céus sobre o Grande Lago, certamente intrigadas pela quieta ondulação das águas, pelo adocicado da brisa, pela ausência de areia nas margens. Vêm, movidas talvez pela curiosidade, pelo fascínio do que é novo e diferente e regressam depois ao litoral e ao mar salgado. Um dia, provavelmente, virão para ficar trazendo na memória "o céu de Lisboa" como no poema-canção de Alexandre O'Neill.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Grandes anúncios em pequeno formato

Já perdi a conta ao número de vezes que alguém me coloca no pára-brisas do carro um pequeno quadrado de papel impresso a preto e branco, assim com um aspecto de fotocópia estafada, a fazer publicidade a um certo “Professor D.”. Começo logo por não entender muito bem o porquê desta designação de “Professor”. Será que o homem dá aulas em alguma escola? E de que disciplina? Ou estará ele, por desconhecimento, a usar o título pensando que alguém ainda dá algum valor a tal profissão? O mais provável é não saber que a condição de professor anda aí pelas lamas da amargura e que o melhor seria arranjar um outro título. Cá por mim sugeria o de “engenheiro" porque transmite logo a ideia de competência técnica associada à inovação, coisa  muito importante nos tempos que correm.

Certo, certo é que, apesar de ser “Professor”, o homem não poupa nos elogios e, de imediato, se auto-qualifica como “Ilustre espiritualista” e “Grande vidente”. Por aqui se vê logo que de falsa modéstia ninguém o poderá acusar!

Mas o mais espantoso vem a seguir e diz respeito à enumeração exaustiva dos problemas que o tal “Professor D.” afirma ser capaz de resolver pois, ainda segundo o tal anúncio, “O mais importante da astrologia é obter bons resultados, rápidos e garantidos a 100%.”. Esta segunda parte da frase assemelha-se muito ao que se costuma escrever nos tratamentos de emagrecimento ‘milagrosos’ que se anunciam e vendem um pouco por toda a parte. Não fiquei, pois, surpreendida quando na última frase do texto ele escreve “Faz emagrecer e engordar.” Só podia!

E afirma-se depois “Dotado de poderes” tais que “ajuda a resolver problemas difíceis ou graves em sete dias” (nem mais um!): amorosos (“Amor”, “Casamento”, “Aproxima e afasta pessoas Amadas com rapidez total”); financeiros e profissionais (“Insucessos”, Negócios”, Sorte nas candidaturas”); psíquicos/psicológicos (“Depressões”); sexuais, mas de um tipo apenas: “Impotência sexual”. O tal “Professor D.” é tão bom que promete resolver um dos grandes flagelos da justiça portuguesa: as “Injustiças”. Tem até poderes para solucionar algo tão vago como “Doenças Espirituais” (só a designação ma dá um arrepio na espinha!) ou coisas tão suspeitas e misteriosas como “Maus olhados” (longe vá o agoiro!). Sobretudo, tem poderes tão grandes que consegue fazer uma coisa e o seu contrário, a pedido do cliente: “faz emagrecer e engordar”; “Aproxima e afasta pessoas”.

Resolve mesmo problemas relacionados com o “Desporto”. Interrogo-me desde já sobre as razões que levaram a selecção de futebol a partir para a África do Sul sem a companhia de tão ilustre personagem mas, pensando melhor, tão grandes poderes devem funcionar mesmo à distância. O texto termina com uma frase a negrito “Facilidades de pagamento”. Ao que parece, a famigerada crise financeira também já chegou aqui, mas há sempre maneiras de contornar a situação.

Agora, havendo a indicação de que tudo é resolvido “em 7 dias” fica-me uma dúvida: e se o cliente não ficar satisfeito? Ou se, no fim do prazo, o problema não estiver resolvido? Como é? Devolve o dinheiro? De qualquer forma o “Ilustre espiritualista” defende-se logo à partida destas pequenas contrariedades afirmando que “ajuda a resolver”, o que é bem diferente de escrever “resolve”,  claro está!

Consulta num horário alargado, “das 9 às 21 horas” e, nos tempos que vivemos, não tenho dúvidas de que, clientes, é que não lhe devem faltar. É que o desespero leva muitas vezes as pessoas a fazer coisas como esta e outras ainda.

Agora, o que me incomoda sempre um pouco é pensar que, havendo tanta gente no mundo com tamanhos poderes e capacidades - os jornais trazem dezenas de anúncios semelhantes –, como é possível que o número de pessoas confrontadas diariamente com problemas graves ou de muito difícil resolução, em vez de diminuir, aumente a toda a hora. Vá lá a gente perceber isto!

terça-feira, 8 de junho de 2010

G de gato e de garrafa

Não é o Gato de Cheshire com o seu sorriso perturbador, mas tem, como ele, uma habilidade extraordinária. Lembrei-me logo de um poema de Eugénio de Andrade (também ele amava, e muito, os gatos): "Gato dos quintais,/ gato dos portões,/ gato dos quartéis,/ gato das pensões." (excerto de Gatos, In Aquela Nuvem e Outras) e acrescento-lhe este verso: "gato de garrafa".

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Grande Silêncio

No ano de 1083, o arcediago alemão São Bruno, que era Reitor dos Estudos Cardinalícios na cidade francesa de Reims, descontente com a igreja do seu tempo, sempre envolvida em eternas querelas de poder e riqueza, decide afastar-se de tudo para se tornar monge. Faz então a sua primeira experiência monástica na abadia de Molesme, então governada por São Roberto, futuro fundador da ordem de Cister. Contudo, aquela vida em comunidade ainda não é o que procura e sai. O que pretende é um sítio ermo, humilde e rústico onde possa dedicar-se por inteiro e sem quaisquer interferências à vida comtemplativa, à oração e à penitência.

Encontra-o em 1084 num vale deserto e selvagem, de difícil acesso, rodeado de montanhas, chamado La Chartreuse, a norte de Grenoble. Aí, juntamente com seis companheiros, funda uma comunidade que se assume como um novo modo de viver no deserto: “unir a uma parte predominante de vida solitária um mínimo suficiente de vida cenobítica ou comunitária que fornecesse ao eremita as vantagens mais prezadas desta última, sem prejudicar aquela” (São Bruno na Cartuxa de Évora, p. 18).

Numa carta dirigida a um amigo do cabido de Reims – Raúl le Verd - e datada de 1096, São Bruno descreve, numa linguagem simbólica e literária, os objectivos da vida e da rigorosa disciplina cartusiana: “O que a solidão e o silêncio do deserto proporcionam de utilidade e gozo divino a quem os ama, só o sabem os que o experimentam.

Aqui, com efeito, podem os varões esforçados recolher-se em si quanto queiram, e morar consigo, cultivar com afã os germes das virtudes, e alimentar-se com alegria dos frutos do Paraíso. Aqui se adquire aquele olhar, cuja visão serena fere de amores o Esposo e cuja pureza e limpidez permite ver a Deus. Aqui se pratica um ócio bem ocupado, se repousa numa sossegada actividade. Aqui, pelo esforço do combate, dá Deus aos seus atletas a desejada recompensa: «a paz que o mundo ignora e a alegria no Espírito Santo» (Rom. 14,17).”

La Chartreuse não era uma Ordem Religiosa e não se regia por nenhuma Regra escrita, sendo o seu método de vida transmitido oralmente, situação que se manteve durante os primeiros quarenta anos da sua existência. Porém, à medida que outros mosteiros foram adoptando idêntica vivência religiosa, tornou-se necessário passar a escrito as orientações espirituais do fundador, São Bruno. É o quinto prior da comunidade – Guigo – quem redige os “Costumes de La Chartreuse”, os quais “serão para sempre a base e fundamento da vida e da legislação cartusiana, subjacentes mesmo à renovação promovida pelo Concílio Vaticano II” (Idem, p. 18). O nome do lugar fundacional - La Chartreuse –, adaptado a cada língua, passou a designar também a Ordem e os próprios monges que a integram. Assim, na língua portuguesa designam-se “monges cartuxos” e “Ordem da Cartuxa”.

A Ordem estabeleceu-se no nosso país graças aos esforços de D. Teotónio (1530-1602) - filho de D. Jaime, Duque de Bragança e de D. Joana Mendonça – que, em 1587, conseguiu que um grupo de monges da Cartuxa espanhola de Scala Dei viesse fundar uma nova Cartuxa em Portugal. O paço real de Évora foi então cedido para a sua hospedagem provisória. Uma missa celebrada na igreja de São Francisco, no dia 8/9/1587, constitui o acto simbólico e fundacinal da Ordem Cartusiana em Portugal, assinalado oficialmente com a redacção e assinatura, dois meses mais tarde, de uma acta pública perante escrivão, onde se registaram todas as concessões e condições para a instalação dos monges. Em 1593 inicia-se a construção extramuros do mosteiro Santa Maria Scala Coeli (Escada do Céu), assim designado em memória da Cartuxa espanhola de onde provinham os monges fundadores. Rodeado de uma extensa propriedade agrícola, na qual os monges trabalhavam, e com os proventos de muitas propriedades entregues à comunidade pelos monges professos, o mosteiro garantiu desde sempre a sua autonomia económica.

Apesar do seu enorme prestígio, após a vitória liberal de 1834, os Cartuxos de Évora conheceram  o mesmo destino de todas as outras ordens religiosas do país: a extinção e a apropriação de todos os seus bens pelo Estado.

Depois de longos anos de abandono e incúria – chegou a ser Escola Agrícola -, o edifício, praticamente em ruínas, foi adquirido pelo Conde de Vil’alva e reconstruído pelo seu neto Eugénio de Almeida, que o devolveu à Ordem Cartusiana em 1960 e onde se vieram então instalar sete monges, para viverem de acordo com as estritas regras da sua ordem: clausura, solidão e silêncio. E por aqui continuam.



O mosteiro já não está, contudo, isolado. Vários bairros têm crescido e, com o tempo, alcançaram os limites da sua cerca. Apesar da ganância falar sempre mais alto quando se trata de construção e urbanismo, julgo que, apesar de tudo, tem havido algum pudor e não se tem assistido, nesta zona de Évora, à construção frenética das aberrações arquitectónicas que são já a marca distintiva de quase todo o resto da cidade, inclusivamente na zona circundante às muralhas. Espero que se saiba respeitar (aceitar seria talvez excessivo nos dias que vivemos) a diferença e a dignidade que aquele espaço representa e que tem tanto direito a existir como qualquer outro, embora os rumos que a cidade (e os seus decisores têm tomado nestes últimos anos) me deixem algumas dúvidas.

E vem tudo isto a propósito de ter estado a ver “Die Große Stille” ou "O Grande Silêncio", o extraordinário filme-documentário de Philip Gröning sobre a vida monástica dos monges Cartuxos na Casa-Mãe da Ordem: La Chartreuse. É um filme avassalador, por causa do silêncio apenas quebrado pelos cânticos litúrgicos dos monges, e sobretudo pela força das imagens. Revela-nos uma outra forma de vida, tão humilde, frugal e exigente que só alguns, dos poucos que sentem o apelo da vocação, aguentam a dureza do convento, os sacrifícios e a rígida e exigente disciplina que a Regra impõe para se conseguir a verdadeira depuração espiritual que os monges pretendem alcançar. Contudo, a serenidade estampada no rosto dos que resistem diz quase tudo sobre o que pretendem alcançar nesta espécie de cápsula do tempo tão distanciada das turbulências exteriores como se não estivesse neste mundo que é o nosso. De repente, é como se os rituais faustosos e teatralizados do Vaticano fossem de uma outra religião. É um filme quase doloroso, mas também fascinante.

domingo, 6 de junho de 2010

Ter asas na voz também é uma música assim

Né Ladeiras (quase esquecida por cá!?) e Chico César.

A epidemia do novo milénio

Dez anos antes de terminar o milénio, Italo Calvino publicou “Seis propostas para o próximo milénio”. Estas propostas correspondem, na verdade, ao ciclo de conferências – as Charles Eliot Norton Poetry Lectures - que o autor foi convidado a fazer na Universidade de Harvard, ao longo do ano lectivo 85-86.

As seis propostas literárias que então apresentou eram: 1. Leveza; 2. Rapidez; 3. Exactidão; 4. Visibilidade; 5. Multiplicidade; 6. Consistência.

Na terceira dessas propostas – Exactidão - Calvino começa por dizer que sofre de uma “hipersensibilidade ou de uma alergia” (p.74) à forma como a linguagem é tantas vezes usada: “parece-me que a linguagem se usa sempre de maneira aproximativa, casual, descuidada, e isso provoca-me um aborrecimento intolerável. Não pensem que esta minha reacção corresponde a uma intolerância para com o próximo: o aborrecimento pior sinto-o ao ouvir-me falar a mim próprio. Por isso tento falar o menos possível, e se prefiro escrever é porque ao escrever posso corrigir as frases quantas vezes forem necessárias para chegar, não digo a ficar satisfeito com as minhas palavras , mas pelo menos a eliminar as razões da insatisfação de que consigo aperceber-me. (p. 74)

Italo Calvino desenvolve depois o seu raciocínio dizendo que: “Às vezes parece-me que uma epidemia pestífera atingiu a humanidade na faculdade que mais a caracteriza, ou seja, o uso da palavra, uma peste da linguagem que se manifesta como perda de força cognitiva e de imediatismo, como um automatismo com a tendência para nivelar a expressão nas fórmulas mais genéricas, anónimas e abstractas, para diluir os significados, para embotar os pontos expressivos, para apagar toda a centelha que crepite do encontro das palavras com novas circunstâncias.(...)

E acrescentarei que não é só a linguagem que me parece atingida por esta peste. Também as imagens, por exemplo. Vivemos debaixo de uma chuva ininterrupta de imagens; os mais poderosos media não fazem senão transformar o mundo em imagens e multiplicá-lo através de uma fantasmagoria de jogos de espelhos: imagens que em grande parte estão privadas da necessidade interna que deveria caracterizar toda a imagem, como forma e como significado, como força de se impor à atenção, como riqueza de significados possíveis. Grande parte desta nuvem de imagens dissolve-se imediatamente, tal como os sonhos que não deixam marcas na memória; mas não se dissolve uma sensação de estranheza e mal-estar.

Mas talvez a inconsistência não esteja só nas imagens ou só na linguagem: está no mundo. A peste também atinge a vida das pessoas e a história das nações, torna todas as histórias informes, casuais, confusas e sem pés nem cabeça. “ (pp. 74-75)

Esclarece ainda Calvino que: “Não me interessa aqui interrogar-me se as origens desta epidemia se devem procurar na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media, na difusão académica da cultura média.” (p. 74) O que lhe interessa são “as possibilidades de salvação” (p. 74) da linguagem que, segundo o autor, estão todas na literatura, mas apenas na literatura que corresponde à sua definição de “exactidão”: “um projecto da obra bem definido” (p. 73), “a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis” (p.73) e, sobretudo, “uma linguagem o mais precisa possível como léxico e na sua capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação” (p.73). Segundo Calvino, só esta literatura “é a Terra Prometida em que a linguagem se torna o que realmente deveria ser” (p. 74) e talvez só ela possa “criar anticorpos que combatam a expansão da peste da linguagem.” (p.74)

Dez anos após o início do milénio para o qual Calvino redigiu estas suas propostas, podemos dizer que a sua descrição se confirma em pleno: a sociedade da informação à escala global é, afinal, o grande vazio da comunicação. Na verdade, falamos, escrevemos e lemos a um ritmo cada vez mais frenético, mas estamos cada vez mais afastados de uma verdadeira comunicação, consistente e significativa. A comunicação interpessoal está saturada de mal-entendidos, de frases vazias de sentido e, sobretudo, de não-ditos, de coisas que preferimos não dizer porque a verdade, a profundidade, a autenticidade, a tal “consistência” que Calvino tanto prezava, assusta cada vez mais um crescente número de pessoas. É, pois, mais fácil, ou talvez menos doloroso, ficar pelas banalidades, pelos estereótipos e pelos rótulos. Fala-se ou escreve-se só para fazer barulho, só para entrar na corrente ininterrupta da comunicação, no faz-de-conta que estamos a comunicar, a sério, com imensas pessoas. No fundo, não passamos muito além daquilo que, em teoria da comunicação, se designa como função fática, isto é, o ruído que nos permite iniciar a comunicação ou sinalizar que estamos/continuamos a comunicar com alguém, mas que, em si mesmo, não transmite qualquer informação e não tem, por isso, qualquer consistência comunicativa. E o mesmo é válido para os media – basta ver como os telejornais são feitos da repetição sistemática das mesmas imagens e notícias até à saciedade total, para se perceber isso mesmo. E para a própria literatura: os escaparates estão cheios de calhamaços que não são mais do que ruído de fundo, centenas de páginas que não dizem nada, não acrescentam nada, não fazem pensar nem reflectir sobre coisa nenhuma. São apenas mais do mesmo. E talvez seja por isso que se tornam “best sellers”, embora se lhes possa claramente aplicar a mesma máxima das chamadas publicações “cor-de-rosa”: está feita, está morta! O que nos vale é que, no meio desta vaga gigantesca de palavreado inútil, lá vão aparecendo livros e autores que valem, de facto, a pena. E enquanto as editoras não desistirem de os publicar talvez ainda haja esperança para este milénio.