terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Cabelos brancos

De vez em quando alguém me pergunta por que razão não pinto os cabelos: se pintasses o cabelo parecias logo quatro ou cinco anos mais nova... dizem-me. Sempre tenho achado curiosa a forma como as mulheres que me cercam ficam incomodadas com os  meus, agora já praticamente grisalhos, cabelos.  Para algumas delas é difícil entender o facto de eu não estar interessada em parecer nem mais nova nem mais velha, ou melhor, não querer ser outra coisa que não eu mesma. Para mim, é peculiar a forma como a maior parte delas, e também alguns homens que conheço, esconde os cabelos brancos debaixo das cores mais variadas, numa tentativa às vezes bastante desajeitada de iludir o calendário e a natureza.

É que os cabelos brancos nunca me angustiaram e também nunca me passou pela cabeça a ideia de os disfarçar. Nunca me senti em desvantagem por causa de os ter e, até hoje, nunca deixei de fazer fosse o que fosse por causa disso. Posso mesmo dizer que alguns dos melhores momentos da minha vida foram vividos junto de pessoas com muitas rugas e cabelos brancos, de bem com a vida e que, por isso mesmo, me fizeram sentir bem ao seu lado. O que verdadeiramente me angustia é pensar que talvez não saiba, ou não consiga envelhecer bem, pois é o que vejo acontecer à minha volta cada vez com mais frequência. De forma paradoxal, as sociedades ocidentais com populações muito envelhecidas, são também as que mais preconceitos têm em relação ao envelhecimento e as que mais rejeitam os velhos. Basta ver como, a (des)propósito de tudo, somos permanentemente bombardeados com imagens de rostos e corpos não apenas jovens e belos, mas também perfeitos e... fabricados nas salas de operações ou nos programas de edição de imagem dos computadores. Envelhecer tornou-se para muitos um drama e há quem gaste fortunas (quem o pode fazer) para construir uma espécie de máscara de cera, muito lisa e esticada, só para fazer de conta que o tempo não passou. Duvido é que, por causa disso, seja mais feliz.

Como escreveu Vergílio Ferreira "Ser jovem ou ser velho não tem apenas que ver com a idade mas também com uma condição (...). Por orgulho ao menos, ou respeito que nos mereçamos, importa que a nossa idade seja a idade que é nossa no vigor ou decadência que nos deixa ou nos visita."

De quando em vez, (re)leio o poema Cabelos Brancos, de António Feijó para me lembrar que, de facto, não são os anos que nos fazem velhos, são certas horas más da vida. Essas é que, a partir de dentro, nos vão corroendo lentamente até que um dia os estragos se tornam visíveis por fora. Os cabelos brancos nada têm que ver com isso ou, quando muito, poderão ser uma das consequências disso.

Não repares na cor dos meus cabelos
Sem ler primeiro Anacreonte;
Verás que os sonhos juvenis, mais belos,
Também se evolam de enrugada fronte.

O espírito do Poeta é sempre moço;
O Coração nunca envelhece...
Basta um sorriso, um nada, um alvoroço,
E tudo nele se ilumina e aquece.

Deusas de eterna graça adolescente,
Jamais as Musas desdenharam
Da luz que treme incendiando o poente,
Dos rouxinóis que ao pôr do Sol cantaram.

Fina e frágil vergôntea melindrosa,
Que foi na ceifa abandonada,
Ruth, apesar de moça e de formosa,
Nos braços de Booz dorme encantada.

Quantas flores de inédita fragância
Em mãos provectas vão abrindo...
Abisag, ao sair quase da infância,
No leito de David entrou sorrindo.

E desse beijo, Inverno e Primavera,
Desse conúbio, ó maravilha!
Como se a ruína fecundasse a hera,
Veio à luz uma estrela que ainda brilha.

Esculturais patrícias, de olhos ledos,
Quem as lembrara, se deixassem
Que mãos obscuras, mercenários dedos,
A velhice de Horácio engrinaldassem?

Quantos nomes ilustres! quantos casos!
Mas que direi mais eloquente?
Não há dias tão pálidos, e ocasos
Como explosões duma cratera ardente?

Não repares na cor dos meus cabelos;
A branda luz que neles arde,
Como o poente, das nuvens faz castelos,
Tinge de alva o crepúsculo da tarde...

Muita vez os cabelos enbranquecem
Na dor de horríveis sofrimentos...
Não são os anos que nos envelhecem;
São certas horas más, certos momentos...

in Sol de Inverno