quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Divagações

A propósito da obra de António Feijó escreve Álvaro Manuel Machado que “na sua preocupação constante de bem versejar, com elevado aprumo artístico, cultiva todos os géneros e exprime todos os matizes poéticos (…), sem dissonâncias de maior e com minúcia de hábil joalheiro, a partir de princípios básicos parnasianos”. Já sobre “Sol de Inverno”, verdadeira “obra de síntese”, afirma que, “sem retórica digressiva”, “com um dramatismo mais contido e por vezes irónico”, constitui uma verdadeira “depuração lírica”, “no interior do processo de evolução do parnasianismo e do decandentismo para o imaginário simbólico”:

O Amor e o Tempo (Christopulos)
Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegra companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

- «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento…
- «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» - Nesse momento,

Volta-se o Amor e diz com azedume:
- «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo… Adeus! Adeus!
 In Sol de Inverno

Diz depois Álvaro Manuel Machado que Feijó escreveu  “sem a máscara da impassibilidade parnasiana” e, sobretudo, “sem o confessionalismo grandiloquente e vulgar herdado do romantismo na sua fase de degenerescência sentimentalista”. É uma poesia feita de “imagens de subtil sugestão” e, por vezes, de uma ironia quase realista:

É filha dum alfaiate
A melindrosa flor a quem eu hoje adoro!
- Faces vermelhas, cor de tomate,
Cabelos de oiro!
Que importa a profissão se o nosso amor se inflama?

Toda a mulher é flor divina,
Quer ela seja, para quem ama,
Tricana, engomadeira ou tsarina.
Esta minha paixão principiou a arder
Por causa dum colete de ramagens…
Quem sabe onde o diabo as vai tecer
Se mesmo num colete, além de bolsos, há voragens?!”
In Urbana

Na confluência das várias tendências literárias que marcaram o final do séc. XIX – (ultra)-romantismo, parnasianismo, decadentismo e simbolismo –, a poesia de António Feijó não é apenas bela no conteúdo e na forma, mas também “inesperadamente actual” (Álvaro Manuel Machado, in Introdução Bibliográfica a “Sol de Inverno”). Ou ainda, revertendo em favor do próprio poeta as palavras que dirigiu ao amigo Júlio Lemos, se pode dizer que “sem preocupações de modernismos, de escolas ou de mestres, deixe-nos ouvir em boas páginas de prosa a canção da sua alma, como dizia um certo inglês de génio chamado William. A literatura portuguesa apodrece numa estrumeira de versos. Plante nela a tulipa esbelta e azul da sua fantasia (…). Mas lembre-se de que só a Beleza é indestrutível e que a moda passa com a estação…” (excerto de carta datada de “Ursa Maior, 6 de Julho de 1897”, a propósito da publicação de Ilha dos Amores).

O Livro da Vida
Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia…
- Lia o «Livro da Vida» - herança inesperada,
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria
Ao primeiro clarão da primeira alvorada.

Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,
Todo o humano tropel num clamor ululando,
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto,
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.
(…)
Cada página abrange um estádio da Vida,
Cujo eterno segredo e alcance transcendente
Ele tenta arrancar da folha percorrida,
Como de mina obscura a pedra refulgente.
(…)
Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,
Nem o humano sofrer, que outras alma enluta,
Nem a neve do Inverno a pratear-lhe os cabelos!

Só depois de voltada a folha derradeira,
Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado,
É que o Sábio entreviu, como numa clareira,
A luz que iluminou todo o caminho andado…

 Juventude, manhãs de Abril, bocas floridas,
Amor, vozes do Lar, estos do Sentimento,
Tudo viu num relance em imagens perdidas,
Muito longe, e a carpir, como em nocturno vento.

Mas então, lamentando o seu estéril zelo,
Quando viu, a essa luz que um instante brilhou,
Como o Livro era bom, como era bom relê-lo,
Sobre ele, para sempre, os seus olhos cerrou... 
In Sol de Inverno