domingo, 17 de janeiro de 2010

Prelecção de São Valentim(?) para aviso dos incautos e diversão dos demais

Já perto do meu destino, as obras na estrada forçam-me a parar. Olho de forma casual para a direita e vejo sentada junto à fonte dita “do Imperador” uma figura de ar cansado e gasto, vestida com estranhas roupas, que falava sozinha em tom muito alto e solene, como se pregasse a uma multidão que, por ocultas razões, permanecesse invisível a todos os olhos menos aos seus. Personagem e cena eram simultaneamente familiares e anacrónicas. Intrigada, baixo o vidro do carro e tento ouvir o que diz:

Duas coisas há nas lides do amor e da paixão causadoras de grandes males e tristezas no coração das gentes. A primeira dá-se quando as relações entre as pessoas se assemelham à clara e à gema dentro da casca do ovo. Assim juntas, confinadas num espaço comum, às vezes por toda uma vida, podem-se cozer, podem-se escalfar, podem-se estrelar, podem-se mesmo fritar mas, qualquer que seja a preparação, bem distintas serão sempre aquela clara e aquela gema: cores diferentes, texturas distintas e sabores bem diversos apresentam ambas. Assim são, muitas vezes, as relações amorosas e grande sofrimento resulta disto, para os próprios e para os que com eles têm a sina de partilhar a caminhada da vida. “Omnia vincit amor”, dizia Virgílio nas suas Bucólicas mas, para isso, há que misturar a gema com a clara e fazer o que se costuma designar por mexidos. Só que este é um preparado com requisitos muito especiais. Para resultar bem exige generosidade, cumplicidade, confiança em si e no outro e, sobretudo, que se goste muito, muito, muito, mas mesmo muito, todos os dias. Requer que se saiba apreciar os dias de sol, aceitar os dias de penumbra e iluminar os momentos mais sombrios. Logo por aqui se vê que é prato que nem todos sabem, querem ou podem fazer. Sobretudo, porque não se trata de a gema ou de a clara abdicarem da sua verdadeira natureza e individualidade em favor do outro, mas, sim, de se unirem para criar um manjar novo, mais complexo e, por isso também, mais saboroso e digno de apreciação.

Neste preciso momento apercebo-me de que os carros à minha frente começam a andar, pois o sinaleiro agitava já o sinal verde. Num impulso, abro o pisca e encosto à berma para continuar a ouvir...

A segunda coisa que tantas vezes ensombra os corações envolvidos numa relação é haver uma pessoa que encara a outra como se de uma folha de papel se tratasse. Arranja-se uma folha em branco e nela se vai escrevendo, escrevendo e, quando já está totalmente preenchida, logo deixa de ter interesse ou utilidade. Seja por comodismo, por preguiça, por simples hábito ou por nenhuma razão em especial, deixa-se ficar em cima da mesa durante um certo tempo. Julga a folha de si para si que, afinal, talvez contenha alguma coisa que valha a pena guardar ou que, talvez, ainda tenha alguma misteriosa utilidade. E depois, um belo dia, vê-se violentamente agarrada, num acesso de raiva, amarfanhada nas mãos e lançada para o cesto dos papéis. Percebe-se então que a folha, embora tivesse permanecido durante todo aquele tempo em cima da mesa, na prática, era como se já estivesse há muito a encher o cesto dos papéis: só faltava o acto derradeiro. Mais fulgurante que a anterior é esta segunda causa de ensombramento dos corações humanos, embora menos duradoura. Por isso, atentai: um amor grande que acalente a alma e aqueça os olhos até os deixar brilhantes é dado a muito poucos e só em raras ocasiões! Para perceberdes quando tão raro caso está na vossa frente é imprescindível ter os olhos do coração bem abertos e, para conseguir agarrá-lo antes que se escape, é imperativo ter os olhos do espírito muito sagazes. Exige ainda que se tenha a coragem de viver todos os dias, e não apenas de vez em quando...

Embora a figura continuasse a sua prelecção, para mim, era tempo de partir pois tinha que ir dar uma aula ao 8º A, turma que, pegando nas palavras do orador, é capaz de fazer omoletes sem um único ovo. Fiz então o resto do percurso a pensar na identidade daquela personagem: tinha estranhas parecenças com São Valentim, mas, no mês de janeiro? Seria esta a razão da sensação de anacronismo que me tinha invadido desde o início? Certo é que, durante o resto do dia, a desconhecida figura e as palavras que lhe ouvi não me sairam da cabeça.