sábado, 9 de janeiro de 2010

Vozes

Nas noites em que o frio parece amplificar mais ainda o silêncio da casa, costuma ficar à escuta das múltiplas vozes que lhe habitam o espírito para fazer de conta que não está só: a voz da tristeza, a voz da amargura, a voz da dor, a voz da raiva, a voz do sonho, a voz do dever, a voz da ternura... Umas vezes apenas ouve sussurros, noutras, o barulho é quase ensurdecedor, pois todas falam ao mesmo tempo num tom zangado. Nesses momentos, a amargura dá voz às pequenas cobardias e indignidades quotidianas, enquanto a raiva resmoneia a meia voz, como se receasse alguém ou alguma coisa. A voz do dever faz muita questão de cortar a palavra à voz do sonho e, por isso, esta última já quase não fala. A voz da dor às vezes chora baixinho durante muito tempo, mas as outras estão demasiado ocupadas consigo próprias para se aperceberem disso. Talvez seja essa distracção que abre espaço aos fugazes rasgos de audácia, alegria ou entusiasmo com que a voz da ternura apanha toda a gente desprevenida. Mas, no fim, é sempre a tristeza que, com a sua voz grave, silencia as companheiras e se faz ouvir durante longas horas.

Sente-se frágil e desgastada pelas desilusões amargas que teve de enfrentar nos últimos tempos e, por isso, tenta manter-se alerta, a fim de não permitir que alguma das vozes assuma o comando do seu espírito, pois tudo se tornaria ainda mais difícil. Talvez seja essa maior percepção de si própria que a leva, certa noite, a reparar numa outra voz, de natureza bem distinta, e a que nunca antes tinha prestado atenção: imóvel, afastada das outras vozes, quase encolhida no canto mais sombrio, de olhar fixo e no mais absoluto mutismo.

Intrigada, conclui que o isolamento silencioso daquela voz talvez se deva a uma excessiva reserva, ou até ao facto de ser demasiado individualista. Porém, numa análise mais detalhada, apercebe-se de que o coro dissonante das outras vozes lhe é, afinal, totalmente indiferente. Percebe ainda que, qualquer que seja a direcção para onde vire o olhar se depara agora com o silêncio acusador da voz encolhida no escuro. Compreende então que, de todas as vozes que lhe povoam o espírito, aquela é a mais perigosa, por ser também a mais implacável e começa a sentir medo do brilho cada vez mais ameaçador dos olhos sempre cravados nos seus.

Pouco a pouco, vai tomando consciência da forma como o mutismo impiedoso daquela voz a compeliu a ficar em silêncio e imóvel nas piores situações que viveu ao longo dos últimos anos, em que era imperativo gritar, barafustar, partir a louça, esmurrar sorrisos cínicos, esmagar palavras sarcásticas ou hipócritas, escavacar portas, sair sem olhar para trás e, afinal, nada disse. Talvez distraída pelo coro estridente das outras vozes, nem se tinha apercebido de como aquela voz soturna, pouco a pouco, se apoderara de forma despótica do seu pensamento e da sua (re)acção, até quase chegar ao ponto de aniquilamento.

Com o arrepio que lhe sacode o corpo vem a súbita compreensão de que a permanência da voz silenciosa e acusadora no seu espírito é incompatível com a lucidez e de que terá de enfrentá-la antes que seja demasiado tarde. É então que arranja forças para elevar a sua própria voz interior e gritar bem alto à voz silenciosa e quieta no canto escuro que ela mesma se acusa de todas as vezes que, em silêncio, se tem limitado a engolir a humilhação, e que o faz sem precisar de se cruzar com o seu olhar feroz. Todavia, convencida de que no fim sairá vencedora, a voz limita-se a sorrir e, mais uma vez, nada diz.

As duas lutam agora todos os dias, sem tréguas, quase corpo a corpo, confinadas pelas cordas de um ringue a que convencionaram chamar blogue. Apostou consigo mesma que a voz silenciosa será a primeira a gritar de dor e que a vai desalojar do canto escuro onde vive barricada de mutismo. Para poder lutar em pé de igualdade com adversária tão temível, pediu à voz do sofrimento que a ensine a ser também mais implacável. Diz-se até disposta a recorrer a golpes baixos pois, afinal, é a sobrevivência do seu próprio ser que está em causa. O coro das vozes dissonantes limita-se a observar, na expectativa de um desfecho por enquanto ainda incerto.