Numa extensa entrevista concedida ao jornal Público (P2, 13/1/10), o historiador Adrian Goldsworthy explica por que razões estudar a cultura clássica nos permite compreender melhor as contradições que marcam os dias que vivemos. E entre as várias razões apontadas destaca o facto de a cultura clássica estar embebida na nossa história e na nossa cultura; a possibilidade de estabelecermos paralelos entre os romanos e nós, os quais nos ajudam a compreender melhor determinados acontecimentos políticos da actualidade e, por fim, como a análise das batalhas travadas pelos grandes generais romanos nos permite perceber o que é um verdadeiro líder e por que é que alguns triunfam e outros fracassam no mundo da política.
Júlio César é, a este propósito, apresentado no livro César - A vida de um colosso (2008), como um caso exemplar, pois embora nem sequer tenha chegado a ser imperador, a sua influência em Roma foi de tal forma marcante que todos os imperadores de Roma se vieram depois a chamar César. Isto, apesar de a sua carreira política e militar romper com os padrões habituais, como sublinha Goldsworthy. César inicia a vida pública como causídico e tribuno, o que lhe permite desenvolver os seus dotes de orador. Já tinha quarenta anos quando entra na vida militar e se torna a principal figura de Roma, na sequência de uma guerra civil que culminou com a lendária travessia do Rubicão, tendo derrotado as tropas de Pompeu, o Grande. Os seus sucessos como figura pública foram sempre políticos e militares já que, na Roma antiga, uma coisa implicava a outra. A mais conhecida campanha militar de Júlio César foi a da Gália. Durou mais de uma década e motivou a escrita, pelo próprio, da obra Comentários sobre a guerra na Gália.
Como é que um homem praticamente sem experiência militar anterior conseguiu conduzir um exército numeroso à vitória num terreno tão difícil e hostil? Adrian Goldsworthy responde dizendo que César tinha uma capacidade simultaneamente natural e intuitiva de desempenhar bem tarefas que a maior parte de nós levaria algum tempo a aprender. Além disso, sabia retirar ensinamentos dos erros que cometia e não voltava a repeti-los. Tinha ainda outras características extraordinárias e decisivas para o seu sucesso: “ao mesmo tempo que tomava decisões difíceis [era] capaz de criar uma enorme empatia com os seus homens”, “sabia sempre onde estar no campo de batalha e, sobretudo, sabia transmitir confiança”; “dirigia-se sempre ao povo de Roma tocando em pontos sensíveis que preocupavam as pessoas, por vezes num registo quase populista, mas mantendo-se fiel a causas que eram problemas reais, como a necessidade de uma distribuição das terras mais justa ou um melhor governo das províncias”. Como explica ainda Goldsworthy, “há pessoas que fazem com que as coisas aconteçam” e Júlio César era uma delas, porque tinha aquilo que distingue um líder: fazer “com que os processos ocorram de forma natural, oleada e rápida, quase como se não estivessem lá: é aí que se consegue distinguir quem tem ou não capacidade de liderança, quem tem de impor as suas ordens ou orientações e quem é naturalmente seguido”.
Com Júlio César “a diplomacia e a política marcham sempre a par com a força militar, pois “Uma das coisas que César sempre percebeu foi que a vitória militar não era suficiente” e que “Há que pensar no dia seguinte às batalhas”. Por isso, “ Durante a campanha da Gália reunia todos os anos com os líderes tribais. O seu objectivo não variava: através das vitórias militares sempre quis criar uma situação em que os líderes locais se sentissem mais satisfeitos por estar dentro do mundo romano do que lutando contra ele”. É aqui que o historiador conclui que César e outros grandes generais romanos nos poderiam ensinar muito sobre “um dos maiores dilemas dos conflitos militares actuais - como ganhar as chamadas “guerras assimétricas”-, já que foi neste domínio que se revelaram especialmente competentes. E as razões, segundo Goldsworthy, são mais políticas do que militares. Primeiro, tiveram “a noção de que era necessário que o adversário acabasse por perceber que Roma iria sempre sair vencedora, mais cedo ou mais tarde, porque era imensamente mais poderosa” e, por isso, não se permitiam o mínimo recuo ou sinal de fraqueza. Depois, eram “muito bons a convencer a opinião pública de que as guerras eram justas, pois tinham a preocupação de tornar claro o que era a guerra, o que ela implicava, o que ela custava”.
Com a interrogação “o que é que isto nos ensina?”, Goldsworthy estabelece então a ponte temporal entre Roma antiga e a época contemporânea, dizendo que “temos de perceber o que o adversário pensa, o que deseja, porque o mais provável é que pense de forma muito diferente da nossa. Se insistirmos em vê-lo como parecido connosco, a grande probabilidade é que falhemos os nossos objectivos”. Afirma depois que “nunca podemos dar um sinal de fraqueza”, é preciso sermos persistentes para levar as coisas até ao fim. Por fim, considera que é preciso ter uma opinião pública favorável às acções militares. Ora, de acordo com o historiador, sobretudo na Europa, mas também já na América, ninguém está “disposto a lutar até ao fim”. “E nas batalhas que hoje se travam, no Iraque ou no Afeganistão, se o adversário percebe que não se quer permanecer muito mais tempo, então o seu raciocínio é simples: basta-lhe esperar. É por isso que os Estados Unidos deviam provar que são capazes de lutar o tempo que for necessário, mas isso não está acontecer”.
São todas estas razões, polémicas sem dúvida, até mesmo contraditórias, mas também pertinentes, que, para Adrian Goldsworthy justificam que se volte a estudar latim e cultura clássica nas escolas e a ler os Comentários sobre a guerra na Gália nas academias militares, como acontecia há algumas décadas atrás. Ainda segundo o historiador, sem medo de que certas coisas se repitam, pois, apesar de tudo, a humanidade mudou para melhor e os espectáculos de circo que culminavam na morte de seres humanos são agora uma impossibilidade.
Contudo, aqui, conhecendo a paixão ibérico-latina por touradas e vendo diariamente as imagens das coisas degradantes que acontecem todos os dias por esse mundo fora, e que não ficam nada a dever em malvadez e desumanidade ao circo romano, é que eu tenho algumas discordâncias: é que o César que ia ao Circus Maximus deleitar-se com os gladiadores e com as feras era o mesmo que escrevia cartas onde manifestava uma profundidade humana em tudo semelhante à nossa. Capaz do melhor e do pior, como qualquer um de nós.
E, ainda a propósito de Júlio César, vale a pena ver este excerto do filme "O Clube do Imperador" que é uma excelente lição de história mas, sobretudo, uma grande lição de vida, como o livro de Adrian Goldsworthy: http://www.youtube.com/watch?v=AALXuCfcOSQ
Post-scriptum - escrito em Évora, antiga Ebora romana que, justamente por se ter mantido fiel a Júlio César nas guerras civis, recebeu como recompensa o título honorífico de Liberalitas Iulia. É caso para dizer. Ave Caesar!